“A ‘NOVA’ DOGMÁTICA E O ATAQUE AOS DIREITOS TRABALHISTAS”

Quero, antes de mais, apresentar os meus calorosos e fraternais cumprimen- tos a todos os presentes, e em particular aos membros da Mesa, Sra Dra Alessandra Camarano e Sr. Dr. João Pedro Ferraz. De- sejo também manifestar o meu profundo e reconhecido agradecimento à Organização do XV Encontro JUTRA pelo honroso con- vite para vir aqui a Belém proferir a Con- ferência de Abertura deste XV Encontro 􏰜􏰇􏰆􏰄􏰌􏰖 􏰟􏰓􏰒􏰌􏰎􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅􏰙 􏰈􏰅􏰁􏰅􏰝􏰂 􏰅􏰒􏰠􏰓􏰌􏰄 􏰁􏰌􏰇􏰈􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 muito especiais a todos quantos ao longo da História lutaram, a todos quantos lutam e a todos quantos lutarão no futuro pelos direitos de quem trabalha, de quem tudo produzenadatemdeseuanãoserasua força de trabalho e a sua dignidade.

Os tempos actuais são, como todos sa- bemos e sentimos, de profundo ataque não apenas aos direitos laborais, mas também aos direitos cívicos, políticos e sociais, tudo isto sob uma capa, sob uma cobertura ide- ológica, sob uma dogmática, que se preten- de de “nova” e até “progressiva”, mas que não passa, afinal, de uma nova roupagem 􏰅􏰏􏰆􏰅􏰄􏰓􏰂􏰄 􏰑􏰌􏰄􏰌 􏰓􏰈􏰅􏰓􏰌􏰁 􏰅 􏰑􏰂􏰎􏰡􏰆􏰓􏰊􏰌􏰁 􏰈􏰅 􏰢􏰗 􏰈􏰣􏰊􏰌- das atrás e, em alguns casos, até de há um século atrás.

A minha interpelação, aqui e agora, é a de

que procuremos então dissecar, e de forma aprofundada e rigorosa, o modo como este discurso legitimador se vem procurando impor e os interesses que ele precisamen- te visa prosseguir e justificar, sem também 􏰌􏰎􏰓􏰋􏰅􏰒􏰆􏰌􏰄 􏰔􏰇􏰌􏰓􏰁􏰔􏰇􏰅􏰄 􏰓􏰎􏰇􏰁􏰕􏰅􏰁 􏰌􏰊􏰅􏰄􏰊􏰌 􏰔􏰇􏰅􏰄 􏰈􏰌natureza de classe do Direito do Trabalho (como se este fosse – que obviamente não é – uma ilha socialista num oceano capita- lista), quer acerca da possibilidade do sis- tema capitalista do Trabalho assalariado se auto-reformar.

A época actual – muitas vezes designa- da de “globalização” – é, sim, a época do grande imperialismo financeiro globalizado à escala mundial. Deste modo:

a) Com as Novas Tecnologias da Comu- nicação e Informação (NTCI) verificou-se, 􏰌􏰒􏰆􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰋􏰌􏰓􏰁􏰙 􏰂 􏰅􏰁􏰆􏰓􏰎􏰢􏰌􏰛􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰒􏰂􏰛􏰕􏰅􏰁 tradicionais de tempo e de espaço1

b) Assistimos à mundialização da própria actividade económica capitalista, assente 􏰅􏰋 􏰞􏰄􏰌􏰒􏰈􏰅􏰁 􏰂􏰄􏰞􏰌􏰒􏰓􏰤􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰍􏰇􏰒􏰊􏰓􏰂􏰒􏰌􏰒􏰈􏰂 􏰅􏰋 constelação ou em rede, e já não temos, como há cerca de um século atrás, apenas um mercado global para o capitalismo com empresas e economias predominantemen-

1 Fazendo, por um lado, com que o “curto prazo” de duas ou três semanas de há umas décadas seja hoje de duas ou três horas apenas e, por outro, que 􏰇􏰋􏰌 􏰓􏰒􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌􏰛􏰐􏰂􏰙 􏰇􏰋 􏰈􏰌􏰈􏰂 􏰂􏰇 􏰇􏰋 􏰍􏰎􏰇􏰏􏰂 􏰍􏰓􏰒􏰌􏰒􏰊􏰅􏰓􏰄􏰂 􏰈􏰅 􏰋􏰓􏰎􏰢􏰕􏰅􏰁 􏰊􏰓􏰄􏰊􏰇􏰎􏰅􏰙 􏰒􏰇􏰋 segundo, de um ponto para outro da Terra.

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te nacionais e um sistema mundializado de transporte de mercadorias, mas sim um capitalismo global, do capital como finança. Temos, pois, uma globalização financeira, de um capital financeiro que é dono das gran- des cadeias produtivas, mas que não pro- duz valor, sendo essa a sua principal carac- terística e também a causa da sua própria crise;

c) Dentro da lógica do funcionamento deste capital financeiro global, verifica-se uma transferência da produção dos paí- ses de economia capitalista mais avançada (como os Estados Unidos da Améria ou a Alemanha) para os países onde fica mais barato produzir, os chamados países emer- gentes ou da periferia (como a Coreia do Sul, o Sudoeste Asiático, a Índia, o Brasil), que estão agora a fazer o seu processo de acumulação primitiva, com:

􏰥 􏰦􏰅􏰁􏰆􏰄􏰇􏰓􏰛􏰐􏰂 􏰌􏰊􏰅􏰎􏰅􏰄􏰌􏰈􏰌 􏰈􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰑􏰄􏰣- -capitalistas de produção.

- Desapropriação das terras colectivas 􏰅 􏰅􏰏􏰑􏰄􏰂􏰑􏰄􏰓􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰌􏰊􏰅􏰎􏰅􏰄􏰌􏰈􏰌 􏰈􏰌􏰁 􏰆􏰅􏰄􏰄􏰌􏰁 􏰌􏰂􏰁 camponeses e pequenos proprietários e vinda destes em massa para as cidades, em busca de sustento.

􏰥 􏰦􏰅􏰁􏰑􏰄􏰅􏰤􏰂 􏰑􏰄􏰂􏰍􏰇􏰒􏰈􏰂 􏰑􏰅􏰎􏰌􏰁 􏰔􏰇􏰅􏰁􏰆􏰕􏰅􏰁 ambientais e entrega dos recursos naturais mais essenciais para os diversos países e mesmo para toda a Humanidade (como a 􏰧􏰋􏰌􏰤􏰨􏰒􏰓􏰌􏰩􏰙 􏰪 􏰅􏰏􏰑􏰎􏰂􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰅􏰁􏰅􏰒􏰍􏰄􏰅􏰌􏰈􏰌 􏰈􏰌􏰁 grandes multinacionais, em obediência à ló- 􏰞􏰓􏰊􏰌 􏰈􏰂 􏰋􏰗􏰏􏰓􏰋􏰂 􏰎􏰇􏰊􏰄􏰂 􏰑􏰌􏰄􏰌 􏰂􏰁 􏰞􏰄􏰌􏰒􏰈􏰅􏰁 􏰓􏰒􏰆􏰅- resses económicos e financeiros,

- Constituição, em particular nas cintu- ras dos centros urbanos mais importantes, de grandes unidades industriais, com utili- zação intensiva de trabalhadores despoja- dos de tudo, muito mal pagos e em péssi- 􏰋􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰈􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰁􏰅􏰞􏰇􏰄􏰌􏰒􏰛􏰌 􏰅 􏰁􏰌􏰫􏰈􏰅􏰖

d) Simultaneamente, ocorre a concen-

tração dos serviços mais qualificados e dos centros de decisão financeira nos pa- íses ditos do “centro”, onde se assiste – a par com a já referida deslocalização das actividades produtivas, em particular da indústria, para os países ditos “emergen- tes”, e a uma consequente diminuição dos operários industriais– a uma proletari- zação crescente dos trabalhadores mais qualificados (como os médicos, bancários, funcionários públicos, advogados, técnicos informáticos, engenheiros e arquitectos), 􏰊􏰂􏰋 􏰅􏰏􏰑􏰄􏰂􏰑􏰄􏰓􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰂􏰁 􏰁􏰌􏰃􏰅􏰄􏰅􏰁 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰔􏰇􏰌􏰎􏰓- ficados e a imposição de vínculos cada vez 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰑􏰄􏰅􏰊􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁􏰙 􏰁􏰌􏰎􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰃􏰌􏰓􏰏􏰂􏰁􏰙 horá- 􏰄􏰓􏰂􏰁 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰅􏰏􏰆􏰅􏰒􏰇􏰌􏰒􏰆􏰅􏰁e mesmo a “inem- pregabilidade” (ou seja, a situação de todos aqueles, em particular os mais jovens, que nunca conseguirão alcançar um emprego e muito menos um emprego compatível com 􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰁􏰑􏰅􏰊􏰆􏰓􏰠􏰌􏰁 􏰔􏰇􏰌􏰎􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁􏰩 􏰈􏰅 􏰇􏰋 􏰞􏰄􏰌􏰒􏰈􏰅 número de trabalhadores. Não porque, em particular com as NTCI, não houvesse tra- 􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰅 􏰌􏰆􏰣 􏰊􏰂􏰋 􏰋􏰅􏰎􏰢􏰂􏰄􏰅􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰈􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰬􏰈􏰅􏰁- de logo, jornadas de trabalho mais curtas) para todos, mas simplesmente porque as 􏰅􏰏􏰓􏰞􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌􏰁 􏰈􏰌 􏰋􏰌􏰒􏰇􏰆􏰅􏰒􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰅􏰎􏰅􏰠􏰌􏰈􏰡􏰁􏰁􏰓􏰋􏰌􏰁 􏰆􏰌􏰏􏰌􏰁 􏰈􏰅 􏰎􏰇􏰊􏰄􏰂 􏰈􏰂􏰁 􏰞􏰄􏰌􏰒􏰈􏰅􏰁 􏰓􏰒􏰆􏰅􏰄􏰅􏰁􏰁􏰅􏰁 financeiros não o permitem nem toleram.

Temos, assim, hoje em dia, e pela primei-

ra vez na História, uma classe operária que

é mundial e que é constituída não só pelos

proletários industriais (cujo número cres-

ce nos países ditos “emergentes” e diminui

nos países denominados do “centro”), mas

􏰆􏰌􏰋􏰃􏰣􏰋 􏰑􏰅􏰎􏰂􏰁 􏰑􏰄􏰂􏰎􏰅􏰆􏰌􏰄􏰓􏰤􏰌􏰈􏰂􏰁 􏰅 􏰅􏰏􏰑􏰄􏰂􏰑􏰄􏰓􏰌-

dos do seu saber, em particular nestes úl-

timos países, e ainda pelo “inempregados”,

􏰂􏰁 􏰔􏰇􏰌􏰓􏰁􏰙 􏰒􏰅􏰋 􏰌􏰁 􏰂􏰄􏰞􏰌􏰒􏰓􏰤􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰑􏰂􏰎􏰡􏰆􏰓􏰊􏰌􏰁􏰙 􏰒􏰅􏰋

2 A classe operária industrial, nos últimos 20 anos, diminuiu 10% nos EUA e 7% na Europa.

3 É o caso em Portugal dos empregos a “recibos verdes” (isto é, das falsas pres- 􏰆􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰁􏰅􏰄􏰠􏰓􏰛􏰂􏰁􏰩 􏰊􏰂􏰋 􏰁􏰌􏰎􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰭􏰮􏰮􏰯 􏰂􏰇 􏰰􏰮􏰮􏰯 􏰋􏰅􏰒􏰁􏰌􏰓􏰁􏰙 􏰅 􏰈􏰌 􏰊􏰂􏰒􏰆􏰄􏰌􏰆􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰅 􏰑􏰄􏰂􏰍􏰓􏰁􏰁􏰓􏰂􏰒􏰌􏰓􏰁 􏰌􏰎􏰆􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰔􏰇􏰌􏰎􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰈􏰂􏰁 􏰊􏰂􏰋􏰂􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰂􏰁 􏰅􏰒􏰍􏰅􏰄􏰋􏰅􏰓􏰄􏰂􏰁􏰙 􏰌 􏰌􏰇􏰍􏰅􏰄􏰓􏰄􏰅􏰋 􏰱􏰙􏰭􏰯 􏰪 􏰢􏰂􏰄􏰌􏰖

ANTÓNIO GARCIA PEREIRA

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Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8 169

“A ‘NOVA’ DOGMÁTICA E O ATAQUE AOS DIREITOS TRABALHISTAS”

os sindicatos, nem os juslaboralistas do sé- culo XXI podem (continuar a) desconhe- cer e desvalorizar pois que representam a 􏰋􏰌􏰁􏰁􏰌 􏰊􏰄􏰡􏰆􏰓􏰊􏰌 􏰈􏰌􏰁 􏰞􏰄􏰌􏰒􏰈􏰅􏰁 􏰆􏰄􏰌􏰒􏰁􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 sociais, políticas e económicas do futuro.

􏰧 􏰅􏰏􏰑􏰎􏰂􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰌􏰆􏰣 􏰪 􏰋􏰅􏰈􏰇􏰎􏰌􏰙 􏰪 􏰋􏰌􏰒􏰅􏰓- ra do século XIX, dos trabalhadores dos países ditos “emergentes” ou de “perife- ria”, a crescente proletarização dos traba- lhadores mais qualificados dos países do “centro” acompanhada de um crescente desemprego e, mais, de um não emprego de trabalhadores, ainda que altamente qua- lificados, apenas para que o grande capital financeiro consiga manter e até aumentar 􏰌􏰁 􏰁􏰇􏰌􏰁 􏰌􏰁􏰆􏰄􏰂􏰒􏰨􏰋􏰓􏰊􏰌􏰁 􏰆􏰌􏰏􏰌􏰁 􏰈􏰅 􏰎􏰇􏰊􏰄􏰂􏰙 􏰆􏰇􏰈􏰂 isto conduz a que se alargue cada vez mais o fosso entre os que tudo produzem e nadatêmdeseueosquetudotêmenada produzem (como evidenciam as estatísti- cas oficiais, inclusive da própria ONU -Or- 􏰞􏰌􏰒􏰓􏰤􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰲􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰳􏰒􏰓􏰈􏰌􏰁􏰙 􏰅􏰋 􏰅􏰁􏰑􏰅􏰊􏰓􏰌􏰎 􏰂 􏰊􏰢􏰌􏰋􏰌􏰈􏰂 􏰴􏰲􏰳􏰦 􏰥􏰴􏰄􏰂􏰞􏰄􏰌􏰋􏰌 􏰈􏰌􏰁 􏰲􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 Unidas para o Desenvolvimento).

􏰵􏰌􏰁 􏰆􏰇􏰈􏰂 􏰓􏰁􏰆􏰂 􏰆􏰌􏰋􏰃􏰣􏰋 􏰑􏰕􏰅 􏰊􏰌􏰈􏰌 􏰠􏰅􏰤 mais a claro a contradição entre forças produtivas cada vez mais avançadas (inclu- sive do ponto de vista da tecnologia e dos enormes aumentos da produtividade que ela possibilita e da menor carga e esfor- ço de trabalho que deveriam proporcionar, 􏰒􏰂􏰋􏰅􏰌􏰈􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰈􏰅 􏰆􏰅􏰋􏰑􏰂􏰁 􏰋􏰗􏰏􏰓􏰋􏰂􏰁 􏰅 􏰈􏰅 ritmos de jornada de trabalho, mas que, 􏰅􏰏􏰌􏰊􏰆􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰑􏰂􏰄 􏰆􏰅􏰄􏰅􏰋 􏰁􏰓􏰈􏰂 􏰌􏰑􏰄􏰂􏰑􏰄􏰓􏰌􏰈􏰂􏰁 por uma ínfima minoria, não proporciona- 􏰄􏰌􏰋􏰩 􏰅 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰓􏰁 􏰬􏰈􏰂 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰌􏰁􏰁􏰌􏰎􏰌- riado) que cada vez mais se mostram injus- tas e impeditivas do progresso social.

E a crise do capitalismo financeiro glo- bal que eclodiu em 2008 – e que atingiu primeiro os Estados Unidos da América e alastrou depois a outras zonas do Mundo,

designadamente a Europa – mostra, quer onde conduz esta autêntica “economia de casino”, quer a necessidade, cada vez mais premente, de alterar estruturalmente este estado de coisas pois é, afinal, a lógica do lucro do grande capital financeiro que im- pede, mata e deslocaliza a produção.

Estamos assim perante uma crise, não meramente económica, mas política, de um 􏰁􏰓􏰁􏰆􏰅􏰋􏰌 􏰑􏰂􏰎􏰡􏰆􏰓􏰊􏰂 􏰈􏰅 􏰅􏰏􏰑􏰎􏰂􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰅 􏰂􏰑􏰄􏰅􏰁􏰁􏰐􏰂 que procura, com todas as forças e por to- dos os meios, manter-se e impor-se, bus- cando apresentar-se como inevitável, inelu- tável e eterno4.

Ora, o processo de imposição deste modo de funcionamento do sistema capi- talista de produção (na fase do capitalismo financeiro global) e das teorias das suas pretensas inevitabilidade e eternidade pas- sa também por um processo de verdadeira destruição dos direitos cívicos, políticos, sociais, designadamente laborais e, precisa- mente a fim de assegurar a sua manutenção e reprodução, passa igual e necessariamen- te pela construção de toda uma dogmática, económica, política, mas também jurídica, que forneça a fundamentação e a justifi- cação ideológico-formal para esse mesmo processo de destruição. Dogmática essa que será sempre tanto mais eficaz quanto mais capaz for de iludir a sua verdadeira natureza de classe, a sua verdadeira finali- dade (a de aumentar ainda mais os fabulo- sos ganhos dos grandes interesses financei- ros e da ínfima minoria que é deles titular) e a sua função legitimadora desse tipo de sociedade (disfarçada sob a natureza pre- tensamente técnica e neutral das medidas 􏰅 􏰁􏰂􏰎􏰇􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰑􏰄􏰅􏰊􏰂􏰒􏰓􏰤􏰌􏰈􏰌􏰁􏰩􏰖

4 Recorde-se que, depois da queda do muro de Berlim e do desmoronar dos regimes que se diziam socialistas, Fukuyama proclamou mesmo – retomando, 􏰌􏰎􏰓􏰗􏰁􏰙 􏰇􏰋􏰌 􏰓􏰒􏰆􏰅􏰄􏰑􏰄􏰅􏰆􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰅􏰄􏰄􏰌􏰈􏰌 􏰅 􏰌􏰃􏰇􏰁􏰓􏰠􏰌 􏰈􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰊􏰅􏰑􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰶􏰅􏰞􏰅􏰎 􏰷 􏰔􏰇􏰅 􏰌 História tinha acabado e que o sistema capitalista era, ele próprio, o fim da História, isto é, que tal sistema se teria (tal como a “Ideia” de Hegel) materia- lizado no mundo e, logo, perduraria por todos os tempos.

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170 Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8

Tal como nos quiseram convencer de que já não seria preciso falarmos em Economia Política, e que quem deveríamos ouvir eram os tecnocratas e “especialistas” do grande capital financeiro (como os da Escola de Chicago)– o que é afinal uma ideologia que precisamente visa desarmar-nos e impedir- -nos de compreender verdadeiramente as coisas e, mais importante ainda, de querer- mos e de sabermos alterá-las –, agora os técnicos do pensamento jurídico dominante pretendem impor como “verdades científi- cas” aquilo que não passa de escolhas e de- 􏰊􏰓􏰁􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰨􏰃􏰠􏰓􏰌 􏰒􏰌􏰆􏰇􏰄􏰅􏰤􏰌 􏰑􏰂􏰎􏰡􏰆􏰓􏰊􏰌􏰖

􏰸􏰋􏰑􏰂􏰄􏰆􏰌􏰙 􏰑􏰂􏰓􏰁􏰙 􏰅􏰏􏰓􏰞􏰓􏰄 􏰅 􏰓􏰋􏰑􏰂􏰄 􏰷 􏰊􏰂􏰒􏰆􏰄􏰌 􏰌 􏰎􏰨􏰞􏰓􏰊􏰌 􏰂􏰑􏰄􏰅􏰁􏰁􏰓􏰠􏰌 􏰅 􏰌􏰁􏰍􏰓􏰏􏰓􏰌􏰒􏰆􏰅 􏰈􏰅􏰁􏰁􏰅 􏰋􏰅􏰁􏰋􏰂 pensamento dominante – a discussão, livre e aprofundada, de tudo, pois não podemos, nem devemos, aceitar tabus ou “verdades feitas”, venham elas de onde vierem.

No que respeita às chamadas “reformas laborais” do grande capital financeiro, im- porta ver que, de uma forma geral, elas as- sentam sempre num duplo raciocínio (cujos termos, todavia, são sempre conveniente- mente apresentados com carácter de pos- tulados indiscutíveis e que, por isso mesmo, não podem nem devem ser discutidos):

1o Na época da chamada globalização da economia, só seria possível ter empresas estáveis e competitivas com trabalhadores instáveis, trabalhando incessantemente, per- manentemente constrangidos e até ame- drontados pela chamada “gestão científica do medo” (o medo de perder o emprego, o medo de perder a casa, o medo do outro, o medo do diferente, o medo do estrangeiro...).

2o A forma de aumentar a produtividade da economia consistiria, sobretudo, na cha-

5 Em Portugal, como de resto um pouco por toda a Europa, as medidas anti- 􏰑􏰂􏰑􏰇􏰎􏰌􏰄􏰅􏰁 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰅􏰏􏰆􏰄􏰅􏰋􏰌􏰁 􏰍􏰂􏰄􏰌􏰋 􏰁􏰇􏰁􏰆􏰅􏰒􏰆􏰌􏰈􏰌􏰁 􏰅 􏰝􏰇􏰁􏰆􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰈􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰋 􏰂 􏰹􏰌􏰄􏰞􏰇􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂􏰺 de que os meios para combater o défice e diminuir a dívida pública não passavam de uma questão “técnica”, cabendo assim apenas aos “especialistas” e aos tecnocratas a definição de tais medidas.

mada “desvalorização interna”, procurando 􏰌􏰁􏰁􏰓􏰋 􏰊􏰂􏰄􏰄􏰅􏰁􏰑􏰂􏰒􏰈􏰅􏰄 􏰪􏰁 􏰅􏰏􏰓􏰞􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌􏰁 􏰈􏰂 􏰞􏰄􏰌􏰒􏰈􏰅 􏰊􏰌􏰑􏰓􏰆􏰌􏰎 􏰍􏰓􏰒􏰌􏰒􏰊􏰅􏰓􏰄􏰂 􏰅 􏰓􏰞􏰇􏰌􏰎􏰌􏰒􏰈􏰂 􏰑􏰂􏰄 􏰃􏰌􏰓􏰏􏰂 􏰂􏰁 paraísos da desregulação social, desde logo com o esmagamento dos custos unitários do trabalho, nomeadamente através de:

a) Restrição ou mesmo eliminação, sob a capa da reforma da Segurança Social ou da Previdência, de impor- tantes direitos sociais (como a diminui- 􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰑􏰄􏰅􏰁􏰆􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰓􏰁 􏰷 􏰁􏰇􏰃􏰁􏰡􏰈􏰓􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰈􏰅􏰁􏰅􏰋􏰑􏰄􏰅􏰞􏰂 􏰂􏰇 􏰈􏰅 􏰈􏰂􏰅􏰒􏰛􏰌 􏰥􏰂􏰇 􏰂 􏰌􏰃􏰌􏰓􏰏􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 􏰈􏰂 􏰠􏰌􏰎􏰂􏰄 􏰈􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌􏰁􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋- plo). Sempre sob o argumento de que tal se torna “tecnicamente” necessário para equilibrar o orçamento, reduzir o défice e a dívida e diminuir a despesa pública (mas para tapar os buracos das fraudes financei- ras na Banca6, para as Parcerias Público- -Privadas (PPP), designadamente na Saúde e nas Auto-estradas7, etc., e para diminuir os impostos sobre os rendimentos da ca- pital􏰷 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰂 􏰸􏰋􏰑􏰂􏰁􏰆􏰂 􏰁􏰂􏰃􏰄􏰅 􏰂􏰁 Rendimentos do Capital (IRC) –, tais “argu- mentos” já obviamente não se aplicam...).

b) Enfraquecimento drástico ou até mesmo destruição da vertente das relações colectivas de trabalho:

- Debilitando e restringindo os modos de luta (greve9) e de acção (acção sindical na Empresa10) colectivas;

- destruindo a contratação colectiva

6 Só desde o início da crise de 2008 foram confiscados aos contribuintes portugueses (que são fundamentalmente os trabalhadores por conta de 􏰂􏰇􏰆􏰄􏰅􏰋􏰩 􏰊􏰅􏰄􏰊􏰌 􏰈􏰅 􏰱􏰮􏰖􏰮􏰮􏰮 􏰋􏰓􏰎􏰢􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰅􏰇􏰄􏰂􏰁 􏰑􏰌􏰄􏰌 􏰓􏰒􏰝􏰅􏰊􏰆􏰌􏰄 􏰒􏰂􏰁 􏰃􏰌􏰒􏰊􏰂􏰁 􏰂􏰒􏰈􏰅 as maiores fraudes foram cometidas pelos banqueiros, com o Banco Espírito Santo à cabeça.

7 Nas PPP, o risco (designadamente decorrente de o número de utilizadores daquela auto-estrada ou daquela unidade de saúde e, logo, o montante das respetivas receitas ser inferior ao inicialmente previsto) corre inteiramente para o Estado (que paga ao privado a diferença entre o efectivamente cobrado e o previsto), enquanto os ganhos (acaso suceder que afinal as receitas são superiores ao previsto) vai integralmente para os bolsos do privado.

8 Durante o período mais agudo da crise em Portugal, o único imposto que, 􏰅􏰒􏰆􏰄􏰅􏰆􏰌􏰒􏰆􏰂􏰙 􏰃􏰌􏰓􏰏􏰂􏰇 􏰍􏰂􏰓􏰙 􏰁􏰓􏰞􏰒􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰆􏰓􏰠􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅􏰙 􏰂 􏰸􏰻􏰼􏰖

9 Designadamente facilitando e aumentando as hipóteses de alargamento da 􏰈􏰅􏰍􏰓􏰒􏰓􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰂􏰁 􏰁􏰅􏰄􏰠􏰓􏰛􏰂􏰁 􏰋􏰡􏰒􏰓􏰋􏰂􏰁 􏰅􏰽􏰂􏰇 􏰈􏰂 􏰈􏰅􏰊􏰄􏰅􏰆􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 􏰑􏰅􏰎􏰂 􏰾􏰏􏰅􏰊􏰇􏰆􏰓􏰠􏰂 􏰈􏰅 mecanismos destruidores da greve, como a requisição civil.

10 É o caso da diminuição dos tempos legais de dispensa do trabalho para 􏰂 􏰅􏰏􏰅􏰄􏰊􏰡􏰊􏰓􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰍􏰇􏰒􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰁􏰓􏰒􏰈􏰓􏰊􏰌􏰓􏰁 􏰂􏰇􏰙 􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰁􏰇􏰊􏰅􏰈􏰅􏰇 􏰄􏰅􏰊􏰅􏰒􏰆􏰅􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰒􏰂 Brasil, da forte restrição dos meios de financiamento da actividade sindical, designadamente no tocante à cobrança das quotas.

ANTÓNIO GARCIA PEREIRA

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Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8 171

“A ‘NOVA’ DOGMÁTICA E O ATAQUE AOS DIREITOS TRABALHISTAS”

como instrumento de melhoria das con- 􏰈􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰎􏰅􏰞􏰌􏰓􏰁 􏰋􏰡􏰒􏰓􏰋􏰌􏰁􏰙 􏰒􏰂􏰋􏰅􏰌􏰈􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰅􏰁􏰆􏰌􏰃􏰅􏰎􏰅􏰊􏰅􏰒􏰈􏰂 􏰌 􏰊􏰌􏰈􏰇􏰊􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰈􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰠􏰅􏰒􏰛􏰕􏰅􏰁 colectivas com a possibilidade de criação de “buracos negros” da sua cobertura, e destruindo o princípio do favor laborato- ris, passando a permitir-se que a contrata- 􏰛􏰐􏰂 􏰊􏰂􏰎􏰅􏰊􏰆􏰓􏰠􏰌 􏰅􏰁􏰆􏰌􏰃􏰅􏰎􏰅􏰛􏰌 􏰊􏰂􏰒􏰈􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰋􏰅􏰒􏰂􏰁favoráveis que as da própria lei11;

􏰥 􏰓􏰋􏰑􏰂􏰒􏰈􏰂 􏰌 􏰹􏰓􏰒􏰈􏰓􏰠􏰓􏰈􏰇􏰌􏰎􏰓􏰤􏰌􏰛􏰐􏰂􏰺 􏰋􏰗􏰏􏰓􏰋􏰌 􏰈􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰅 􏰌 􏰁􏰇􏰌 􏰹􏰊􏰓􏰠􏰓􏰎􏰓􏰤􏰌􏰛􏰐􏰂􏰺 􏰬􏰓􏰁􏰆􏰂 􏰣􏰙 􏰌 􏰌􏰑􏰄􏰂􏰏􏰓􏰋􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰪􏰁 􏰄􏰅􏰞􏰄􏰌􏰁 􏰈􏰂 Direito Civil), com a consagração do pre- domínio do contratado (sobretudo indi- vidualmente), ainda que menos favorável, sobre o legislado e o consequente desequi- líbrio estrutural de poderes a favor do em- pregador (designadamente em matéria de 􏰍􏰓􏰏􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰅 􏰢􏰂􏰄􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁􏰙 􏰈􏰅 􏰎􏰂􏰊􏰌􏰓􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰅 􏰈􏰅 􏰍􏰇􏰒􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰅􏰏􏰓􏰞􏰡􏰠􏰅􏰓􏰁 􏰌􏰂 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰌􏰈􏰂􏰄􏰩􏰙 􏰆􏰇􏰈􏰂 sob a capa da falácia do pretenso “encon- tro de vontades”, da “liberdade contratual” e da “autonomia da vontade das partes”.

- alargando, com base em particular na facilitação do uso da contratação

precária (do trabalho temporário e dos contratos a termo, ou a prazo, e ainda dos “contratos de muito curta duração” aos contratos ditos de “prestação de servi- ços”) a imposição, ao jeito de verdadeiros 􏰊􏰂􏰒􏰆􏰄􏰌􏰆􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰋􏰅􏰄􏰌 􏰌􏰈􏰅􏰁􏰐􏰂􏰙 􏰈􏰅 􏰄􏰅􏰆􏰄􏰓􏰃􏰇􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁miseráveis12, de horários próprios do sé- 􏰊􏰇􏰎􏰂 􏰿􏰸􏰿􏰙 􏰈􏰌 􏰌􏰇􏰁􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌 􏰈􏰅 􏰊􏰂􏰒􏰈􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰋􏰓􏰒􏰓- mamente dignas de segurança e saúde no trabalho, etc.

11 􏰧􏰓􏰒􏰈􏰌 􏰔􏰇􏰅 􏰊􏰂􏰋 􏰌􏰎􏰞􏰇􏰒􏰁 􏰆􏰅􏰋􏰑􏰅􏰄􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂􏰁 􏰓􏰒􏰆􏰄􏰂􏰈􏰇􏰤􏰓􏰈􏰂􏰁 􏰑􏰂􏰄 􏰌􏰎􏰆􏰅􏰄􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰎􏰅􏰞􏰌􏰓􏰁 posteriores, o Código do Trabalho português de 2003 veio precisamente 􏰑􏰅􏰄􏰋􏰓􏰆􏰓􏰄 􏰔􏰇􏰅􏰄 􏰌 􏰊􏰌􏰈􏰇􏰊􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰈􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰠􏰅􏰒􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰊􏰂􏰎􏰅􏰊􏰆􏰓􏰠􏰌􏰁􏰙 􏰔􏰇􏰅􏰄 􏰌 􏰑􏰂􏰁􏰁􏰓􏰃􏰓􏰎􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅 de a contratação colectiva conter tratamento menos favorável que o da lei, respectivamente nos actuais artigos 501o e 3o do mesmo Código.

12 Podendo verificar-se nas próprias estatísticas oficiais (designadamente as 􏰈􏰂􏰁 􏰊􏰢􏰌􏰋􏰌􏰈􏰂􏰁 􏰹􏰔􏰇􏰌􏰈􏰄􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰄􏰅􏰋􏰇􏰒􏰅􏰄􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁􏰺􏰙 􏰑􏰇􏰃􏰎􏰓􏰊􏰌􏰈􏰂􏰁 􏰑􏰅􏰎􏰂 􏰵􏰓􏰒􏰓􏰁􏰆􏰣􏰄􏰓􏰂 􏰈􏰂 􏱀􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂􏰩 􏰔􏰇􏰅􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰄􏰅􏰍􏰅􏰄􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌 􏰌 􏰇􏰋 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰌􏰈􏰂􏰄 􏰊􏰂􏰋 􏰌􏰁 􏰋􏰅􏰁􏰋􏰌􏰁 􏰍􏰇􏰒􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰅 com um contrato sem termo, o salário de um contratado a prazo é, em média, 74% do daquele, e o de um contratado sob a capa de uma pretensa “prestação 􏰈􏰅 􏰁􏰅􏰄􏰠􏰓􏰛􏰂􏰁􏰺􏰙 􏰈􏰅 􏰭􏰭􏱁 􏰌 􏰰􏰮􏱁􏱂 􏱃􏰇􏰞􏰅􏰄􏰅􏰥􏰁􏰅 􏰌 􏰎􏰅􏰓􏰆􏰇􏰄􏰌 􏰈􏰂􏰁 􏰆􏰅􏰏􏰆􏰂􏰁 􏰹􏰴􏰂􏰄􏰆􏰇􏰞􏰌􏰎􏰙 􏰇􏰋 􏰑􏰌􏰡􏰁 de escravos”, “Trabalhadores ou escravos?” e “O regresso dos homens de Neandertal ao mundo do trabalho”, da minha autoria e publicados em www. noticiasonline.eu.

c) Definição e aplicação de refor- mas laborais que, para além da diminui- ção drástica dos direitos sociais, passam sempre – como também em larga medida passaram em Portugal13 – por:

-Tornar fáceis e baratos quer a contrata- ção precária quer os despedimentos, desig- nadamente os despedimentos por causas alegadamente económicas14;

􏰥 􏰈􏰓􏰋􏰓􏰒􏰇􏰓􏰄 􏰂􏰁 􏰁􏰌􏰎􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁 􏰅 􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰆􏰄􏰓􏰃􏰇􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁􏰙 􏰓􏰒􏰊􏰎􏰇􏰁􏰓􏰠􏰅 􏰌􏰃􏰌􏰓􏰏􏰂 􏰈􏰂 􏰠􏰌􏰎􏰂􏰄 􏰈􏰌 􏰍􏰂􏰄􏰛􏰌 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌- balho (ou seja, do montante indispensável para assegurar a sua manutenção e repro- dução);

- aumentar os tempos e intensificar os ritmos de trabalho;

􏰥 􏰃􏰌􏰓􏰏􏰌􏰄 􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰆􏰄􏰓􏰃􏰇􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰑􏰌􏰆􏰄􏰂􏰒􏰌􏰓􏰁 􏰑􏰌􏰄􏰌 a Segurança Social e reduzir os direitos so- 􏰊􏰓􏰌􏰓􏰁 􏰅 􏰅􏰋 􏰑􏰌􏰄􏰆􏰓􏰊􏰇􏰎􏰌􏰄 􏰌􏰁 􏰑􏰅􏰒􏰁􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰄􏰅􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌 (não raras vezes empurrando os trabalha- dores para o sector privado dos seguros, 􏰊􏰂􏰋 􏰹􏰁􏰂􏰎􏰇􏰛􏰕􏰅􏰁􏰺 􏰈􏰓􏰆􏰌􏰁 􏰌􏰎􏰆􏰅􏰄􏰒􏰌􏰆􏰓􏰠􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰂􏰁 PPR-Planos de Poupança Reforma e Fun- 􏰈􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰴􏰅􏰒􏰁􏰕􏰅􏰁􏰩􏰖

Acontece ainda que, não raras vezes, tem sido defendida – e inclusive pela pró- pria OIT (Organização Internacional do Trabalho), e não só para a Europa como para fora dela15 – a adopção de um outro tipo de medidas, ditas de criação de em- prego, mas cujo resultado é o de acabar por aumentar ainda mais a precarização 􏰎􏰌􏰃􏰂􏰄􏰌􏰎 􏰅 􏰊􏰂􏰒􏰆􏰄􏰓􏰃􏰇􏰓􏰄 􏰑􏰌􏰄􏰌 􏰂 􏰌􏰃􏰌􏰓􏰏􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 geral dos salários.

13 Assim, muito em particular as Leis no 23/2012, de 25/6, e a no 69/2013, de 30/8, modificaram o regime legal dos tempos de trabalho (designadamente no tocante aos dias de férias e de folgas e aos regimes de adaptabilidade e do banco de horas, da isenção de horário de trabalho e de trabalho suplementar) bem como dos contratos de muito curta duração e dos despedimentos por 􏰝􏰇􏰁􏰆􏰌 􏰊􏰌􏰇􏰁􏰌 􏰹􏰂􏰃􏰝􏰅􏰊􏰆􏰓􏰠􏰌􏰺 􏰬􏰊􏰂􏰎􏰅􏰊􏰆􏰓􏰠􏰂􏰁􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰆􏰓􏰒􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰂 􏰑􏰂􏰁􏰆􏰂 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰅􏰙 sobretudo, por inadaptação do trabalhador).

14A indemnização que é devida a um trabalhador abrangido por um destes despedimentos por justa causa objectiva passou em Portugal, nos termos do arto 366o do Código do Trabalho, de 30 dias de retribuição base e diuturnidades para apenas 12 dias por cada ano de antiguidade e não podendo 􏰒􏰇􏰒􏰊􏰌 􏰅􏰏􏰊􏰅􏰈􏰅􏰄 􏰇􏰋 􏰋􏰂􏰒􏰆􏰌􏰒􏰆􏰅 􏰞􏰎􏰂􏰃􏰌􏰎 􏰁􏰇􏰑􏰅􏰄􏰓􏰂􏰄 􏰌 􏱄􏰱 􏰋􏰅􏰁􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰄􏰅􏰆􏰄􏰓􏰃􏰇􏰓􏰛􏰐􏰂 􏰃􏰌􏰁􏰅 􏰅 diuturnidades.

15􏱅􏰅􏰝􏰌􏰥􏰁􏰅􏰙􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙􏰂 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰆􏰨􏰄􏰓􏰂􏰹􏰴􏰂􏰎􏰡􏰆􏰓􏰊􏰌􏰁 􏰌􏰊􏰆􏰓􏰠􏰌􏰁 􏰈􏰅 􏰋􏰅􏰄􏰊􏰌􏰈􏰂 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰒􏰌 América Latina e no Caribe”, 2016.

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172 Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8

Desde logo, ao permitir legalmente16 a contratação a termo ou a prazo de jovens à procura do primeiro emprego ou de de- sempregados de longa duração para ocu- parem postos de trabalho permanentes, ou o emprego de desempregados inscritos nos Centros de Emprego. Ou o estabeleci- mento, como condição para eles poderem receber o subsídio de desemprego, da sua colocação em empregos ditos formais, mas com salários muito inferiores ao salário mí- 􏰒􏰓􏰋􏰂 􏰒􏰌􏰊􏰓􏰂􏰒􏰌􏰎􏰙 􏰅􏰋 􏰌􏰊􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰓􏰆􏰌􏰁 􏰈􏰅 􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌- ção muitas vezes por completo desfasadas da realidade, ou ainda em outros tipos de ocupação profissional com direitos reduzi- dos, tudo na famigerada lógica da chamada “evolução” do welfare para o workfare (e, claro, da fraudulenta diminuição das esta- tísticas do desemprego).

Temos também os chamados “estímulos à criação do próprio emprego”, promoven- do a transformação de trabalhadores por conta de outrem que se encontrem desem- pregados, em empresários em nome indivi- dual através da constituição de sociedade unipessoais, ditas prestadoras de serviços. Ou a diminuição dos descontos patronais para os empregadores que celebrem novos contratos de trabalho, com a consequente debilitação financeira do próprio sistema da Segurança Social e a subsequente defesa da necessidade da “reforma” deste, enten- dida esta sempre como significando a di- minuição dos direitos dos trabalhadores, quer ainda no activo, quer após a reforma.

􏰾􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰁 􏰃􏰅􏰋 􏰁􏰓􏰞􏰒􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰆􏰓􏰠􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰂􏰈􏰂􏰁 estes tipos de medidas no Brasil são, no- meadamente, a Lei no 13429, de 31/3/17, que alargou a possibilidade da terciariza- ção das chamadas “actividades-meio” para todas as actividades, e a Lei no 13467, de

16 Cf. arto 140o, no 4 do Código do Trabalho português.

14/7/17 que alterou mais de 100 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e que, entre outros pontos, consagrou o famigerado princípio do predomínio do contratado sobre o legislado e permitiu a redução do salário no trabalho no domicí- lio e o aumento da jornada de trabalho até às 12 horas diárias.

Creio que os resultados já conhecidos no Brasil relativamente a todas estas me- didas confirmam aquilo que já amplamente se conhece na Europa – um aumento geral 􏰈􏰌 􏰑􏰄􏰅􏰊􏰌􏰄􏰓􏰅􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰒􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂17, a diminuição dos salários18, a intensificação 􏰈􏰌 􏰅􏰏􏰑􏰎􏰂􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰂􏰁 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰌􏰈􏰂􏰄􏰅􏰁19, o au- mento da pobreza20, o incremento da con- corrência entre trabalhadores, dentro da velha lógica do “dividir para reinar”, bem como a progressiva rarefacção e a assim promovida e provocada incapacidade da le- 􏰞􏰓􏰁􏰎􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰎􏰌􏰃􏰂􏰄􏰌􏰎 􏰌􏰓􏰒􏰈􏰌 􏰅􏰏􏰓􏰁􏰆􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰑􏰌􏰄􏰌 􏰄􏰅􏰞􏰇􏰎􏰌􏰄 􏰋􏰓􏰒􏰓􏰋􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂21.

Ora, certo é que todo este conjunto de

medidas, só aparentemente técnico-jurídi-

17 Em Portugal, tem-se assistido a uma autêntica proliferação deste tipo de 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰅􏰈􏰌􏰈􏰅􏰁 􏰊􏰂􏰋􏰅􏰄􏰊􏰓􏰌􏰓􏰁 􏰷 􏰋􏰌􏰏􏰓􏰋􏰅 􏰈􏰌􏰁 􏰹􏰁􏰂􏰊􏰓􏰅􏰈􏰌􏰈􏰅􏰁 􏰇􏰒􏰓􏰑􏰅􏰁􏰁􏰂􏰌􏰓􏰁􏰺􏰙 􏰓􏰒􏰊􏰎􏰇􏰁􏰓􏰠􏰅 de trabalhadores altamente qualificados como médicos – que encobrem duplamente (pela máscara da “prestação de serviços” e pela circunstância de o 􏰌􏰎􏰅􏰞􏰌􏰈􏰂 􏰑􏰄􏰅􏰁􏰆􏰌􏰈􏰂􏰄 􏰁􏰅􏰄 􏰇􏰋􏰌 􏰑􏰅􏰁􏰁􏰂􏰌 􏰊􏰂􏰎􏰅􏰊􏰆􏰓􏰠􏰌􏰩 􏰠􏰅􏰄􏰈􏰌􏰈􏰅􏰓􏰄􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 subordinado, mas que se torna muito mais difícil desvendar e declarar como tal, em particular na situação que se vive na Justiça Laboral portuguesa, e a que adiante se fará referência.

18 Segundo dados oficiais do próprio Instituto Nacional de Estatística (INE), 􏰱􏱆􏰙􏱄􏱁 􏰈􏰂􏰁 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰌􏰈􏰂􏰄􏰅􏰁 􏰑􏰂􏰄􏰆􏰇􏰞􏰇􏰅􏰁􏰅􏰁 􏰞􏰌􏰒􏰢􏰌􏰋 􏰌􏰆􏰣 􏰭􏱇􏱇􏰯 􏰑􏰂􏰄 􏰋􏰚􏰁 􏰅 􏱈􏱄􏰙􏰭􏱁 􏰅􏰒􏰆􏰄􏰅 􏰰􏰮􏰮􏰯 􏰅 􏱆􏱇􏱇􏰯 􏰋􏰅􏰒􏰁􏰌􏰓􏰁􏰙 􏰓􏰁􏰆􏰂 􏰔􏰇􏰌􏰒􏰈􏰂 􏰂 􏰠􏰌􏰎􏰂􏰄 􏰈􏰂 􏰄􏰅􏰒􏰈􏰓􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 􏰊􏰂􏰒􏰁􏰓􏰈􏰅􏰄􏰌􏰈􏰂 necessário para um adulto sozinho ter um padrão de vida digno, segundo o relatório da OCDE sobre o rendimento adequado em Portugal, actualizado 􏰌􏰂􏰁 􏰠􏰌􏰎􏰂􏰄􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰱􏰮􏱄􏱉􏰙 􏰣 􏰈􏰅􏰖􏰖􏰖 􏱄􏰖􏰮􏰱􏰭􏰯 􏰋􏰅􏰒􏰁􏰌􏰓􏰁􏰖

19 De acordo com o Eurofound (Fundação Europeia para a Melhoria das 􏰼􏰂􏰒􏰈􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏱅􏰓􏰈􏰌 􏰅 􏰈􏰅 􏱀􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂􏰩􏰙 􏰴􏰂􏰄􏰆􏰇􏰞􏰌􏰎 􏰣 􏰂 􏱊􏱋 􏰑􏰌􏰡􏰁 􏰈􏰂􏰁 􏰱􏱆 􏰑􏰌􏰡􏰁􏰅􏰁 􏰈􏰌 􏰳􏰒􏰓􏰐􏰂 􏰾􏰇􏰄􏰂􏰑􏰅􏰓􏰌 􏰊􏰂􏰋 􏰢􏰂􏰄􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰅􏰏􏰆􏰅􏰒􏰁􏰂􏰁􏱌 􏱄􏱇􏰭􏱆 􏰢􏰂􏰄􏰌􏰁 􏰌􏰒􏰇􏰌􏰓􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰆􏰄􏰌 􏰌 média EU-28 que é de 1669 horas e 1418 horas na Alemanha. Mais de 76,6% dos trabalhadores portugueses não têm um horário de trabalho normal ou 􏰍􏰓􏰏􏰂􏰙 􏰅 􏰅􏰋 􏰊􏰅􏰄􏰆􏰂􏰁 􏰁􏰅􏰊􏰆􏰂􏰄􏰅􏰁􏰙 􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰌 􏰊􏰂􏰒􏰁􏰆􏰄􏰇􏰛􏰐􏰂 􏰊􏰓􏰠􏰓􏰎􏰙 􏰅􏰁􏰁􏰌 􏰑􏰅􏰄􏰊􏰅􏰒􏰆􏰌􏰞􏰅􏰋 􏰊􏰢􏰅􏰞􏰌 a 85%. De acordo com um estudo da Michael Page (empresa especializada na selecção e recrutamento de quadros altamente qualificados), 87,1% dos trabalhadores portugueses desenvolvem algum trabalho (não pago) remotamente, fora do horário oficial, designadamente à noite e ao fim de 􏰁􏰅􏰋􏰌􏰒􏰌􏰙 􏰌􏰎􏰣􏰋 􏰈􏰅 􏰰􏱄􏰙􏱄􏱁 􏰅􏰏􏰅􏰊􏰇􏰆􏰌􏰄􏰅􏰋 􏰌􏰎􏰞􏰇􏰋 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂􏰙 􏰆􏰌􏰋􏰃􏰣􏰋 􏰞􏰄􏰌􏰆􏰇􏰓􏰆􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅􏰙 durante as férias. Presentemente, um trabalhador português ganha, em média, metade de um espanhol, cerca de 1/3 de um francês e 1/4 de um dinamarquês, mas é dos que tem que suportar maior carga fiscal (13o em 35 países).

20 A pobreza em Portugal – dos que vivem com privação material severa ou estão há muito tempo fora do mercado de trabalho – atinge 23,3% da população.

21 Portugal é hoje um país onde se estima que a área do chamado trabalho informal, atípico ou não declarado (onde se inclui, também, mas não só, a actividade dos imigrantes ilegais) representa cerca de 25% do PIB, nela não entrando nem se aplicando a lei, designadamente laboral.

ANTÓNIO GARCIA PEREIRA

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Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8 173

“A ‘NOVA’ DOGMÁTICA E O ATAQUE AOS DIREITOS TRABALHISTAS”

cas, mas realmente político-ideológicas, é sustentado e legitimado por todo um ide- ário não só do campo político geral, mas também do âmbito da própria dogmática juslaboralista, que importa então pôr a claro.

Esse fundo, que, repete-se, nada tem de “técnico”, assenta num conjunto de con- 􏰊􏰅􏰑􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰃􏰗􏰁􏰓􏰊􏰌􏰁 􏰔􏰇􏰅 􏰁􏰅 􏰓􏰋􏰑􏰕􏰅 􏰌􏰒􏰌􏰎􏰓􏰁􏰌􏰄 􏰊􏰄􏰓- ticamente, e algumas das quais, aliás, já fo- ram, entretanto, sendo assinaladas, a saber:

1. Desvalorização do Trabalho como ins- trumento de afirmação e realização

pessoal e social, e promoção permanen- te e absoluta dos valores do poder, do di- nheiro e do “sucesso” a todo o custo.

2. Pregação de um individualismo feroz, o qual passa pela concepção de todos os outros, a começar pelos próprios compa- nheiros de trabalho, como adversários a ultrapassar, senão mesmo como inimigos a “abater”, e pela consequente defesa da “lei 􏰈􏰌 􏰁􏰅􏰎􏰠􏰌􏰺 􏰒􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰑􏰅􏰁􏰁􏰂􏰌􏰓􏰁 􏰅 􏰒􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰓􏰁􏰖

3. Gestão “científica” do medo, do medo do estrangeiro, do deficiente, do diferen- te, do “outro”, simplesmente22 – pois que é muito mais fácil dirigir e controlar cida- dãos, e cidadãos trabalhadores, permanen- temente amedrontados, divididos, instáveis e incansáveis, (sobre)vivendo e trabalhando como autênticos novos escravos.

4. Desprezo e ataque aos mais fracos e mais vulneráveis, apresentados como seres

22 O papel da figura retórica de conceitos como o “outro” e da violência simbólica que eles acarretam foi estudado, sob a perspectiva da justificação 􏰈􏰌􏰁 􏰈􏰂􏰋􏰓􏰒􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰊􏰂􏰎􏰂􏰒􏰓􏰌􏰓􏰁􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏱍􏰖􏰼􏰖 􏱃􏰑􏰓􏰠􏰌􏰊􏰙 􏰹􏱀􏰢􏰅 􏰻􏰌􏰒􏰓 􏰂􏰍 􏱃􏰓􏰄􏰋􏰇􏰄􏱌 􏰌􏰒 􏰅􏰁􏰁􏰌􏱎 􏰓􏰒 reading the archive”, History and Theory, 24 (3), 1985, pp. 247-72. E bem mais recentemente, por M. Backhouse, Grüne Landnahme, Münster, Westfälisches Dampfboot, 2015, especificamente quanto ao conceito de “áreas degradadas” (“degradierte Flächen”), utilizado até na lei para assim justificar a transferência 􏰬􏰅􏰏􏰑􏰄􏰂􏰑􏰄􏰓􏰌􏰛􏰐􏰂􏰩 􏰈􏰌 􏰆􏰓􏰆􏰇􏰎􏰌􏰄􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰈􏰅 􏰗􏰄􏰅􏰌􏰁 􏰠􏰅􏰄􏰈􏰅􏰁 􏰈􏰌 􏰑􏰄􏰂􏰑􏰄􏰓􏰅􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰈􏰅 􏰑􏰅􏰔􏰇􏰅􏰒􏰂􏰁 proprietários para grandes empresas no Estado do Pará. E o mesmo se diga da linguagem policial frequentemente usada em Portugal acerca dos bairros 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰓􏰁􏰙 􏰌􏰑􏰅􏰎􏰓􏰈􏰌􏰈􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰹􏰃􏰌􏰓􏰄􏰄􏰂􏰁 􏰑􏰄􏰂􏰃􏰎􏰅􏰋􏰗􏰆􏰓􏰊􏰂􏰁􏰺􏰖 􏱀􏰇􏰈􏰂 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰔􏰇􏰅 􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰌 􏰈􏰓􏰁􏰊􏰄􏰓􏰋􏰓􏰒􏰌􏰛􏰐􏰂􏰙 􏰌 􏰅􏰏􏰑􏰎􏰂􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂􏰙 􏰂 􏰊􏰂􏰒􏰍􏰓􏰁􏰊􏰂 􏰅 􏰌 􏰑􏰅􏰄􏰁􏰅􏰞􏰇􏰓􏰛􏰐􏰂 􏰁􏰐􏰂 􏰝􏰇􏰁􏰆􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰈􏰂􏰁 􏰅 legitimados, aliás, com a contribuição do próprio Direito, definindo as vítimas desses processos como “atrasados”, “inferiores”, “resistentes à civilização e à integração” e, logo, justificadoras da aplicação da disciplina adequada à sua 􏰓􏰒􏰆􏰅􏰞􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰎 􏰅 􏰑􏰂􏰎􏰡􏰆􏰓􏰊􏰌􏰖􏱀􏰌􏰎 􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰂 􏰑􏰄􏰨􏰑􏰄􏰓􏰂 􏰵􏰌􏰄􏰏 􏰝􏰗 􏰅􏰏􏰑􏰎􏰓􏰊􏰌􏰄􏰌 􏰌 􏰌􏰑􏰄􏰂􏰠􏰌􏰛􏰐􏰂 naInglaterra,apartirdoSéculoXV,deváriasleiscontraamendicidadeea chamada vagabundagem.

“inferiores” e fonte de encargos e despesas escusados, que apenas prejudicam os res- tantes membros da sociedade. E assim se trata sempre de:

- Fomentar, por todos os meios, o confli- to, em vez da solidariedade, intergeracional; - Apontar os que ousam lutar e recla-

mar, como “retrógrados”, “resistentes à mudança”, “privilegiados”, “inadaptados” e, sobretudo, “trouble makers” que se impo- ria afastar, punir e sanear rapidamente – é a famigerada tese de que “não há problema enquanto alguém (no mínimo, ignorante e 􏰒􏰂 􏰋􏰗􏰏􏰓􏰋􏰂􏰙 􏰋􏰌􏰎􏰥􏰓􏰒􏰆􏰅􏰒􏰊􏰓􏰂􏰒􏰌􏰈􏰂􏰩 􏰒􏰐􏰂 􏰍􏰓􏰤􏰅􏰄 disso um problema”. Como com o siste- ma capitalista financeiro globalizado temos 􏰹􏰞􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰌 􏰋􏰌􏰓􏰁􏰺 􏰑􏰌􏰄􏰌 􏰋􏰌􏰒􏰆􏰅􏰄 􏰌 􏰅􏰏􏰑􏰎􏰂􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂 ao nível da cúpula financeira, a “solução” que o capitalismo reserva para essa gente é 􏰌 􏰈􏰅 􏰷 􏰒􏰌 􏰎􏰨􏰞􏰓􏰊􏰌 􏰈􏰌􏰁 􏰁􏰂􏰎􏰇􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰋􏰌􏰎􏰆􏰢􏰇􏰁􏰓􏰌􏰒􏰌􏰁 – fazê-los “morrer à fome”, embora haja na sociedade recursos mais que suficientes para garantir a subsistência de tais pessoas, com a consequente legitimação das medi- das da “solução final” para elas e a “tole- rância zero” para com os mais vulneráveis, afirmando assim, como valor superior (e tal como justamente assinala Hannah Arendt) a sobrevivência dos mais aptos e dos con- siderados “superiores”;

- definir os desempregados como “pie- gas” e “vadios”, que não querem é

trabalhar e, para os que trabalham em 􏰊􏰂􏰒􏰈􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰋􏰓􏰁􏰅􏰄􏰗􏰠􏰅􏰓􏰁􏰙 􏰄􏰅􏰑􏰅􏰆􏰓􏰄􏰥􏰎􏰢􏰅􏰁 􏰋􏰓􏰎􏰢􏰅􏰒- tas vezes que “mais vale um mau emprego que emprego nenhum” e que devem fazer da precariedade “uma oportunidade e não

23 uma dificuldade ;

- apontar os idosos como gente que

23 23 O relatório da OIT intitulado “Trabalho digno em Portugal – 2008- 2018” assinala (p. 51) que um trabalhador que “nasce temporário tende a ser temporário para o resto da vida” e a possibilidade de transitar para um 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂􏰑􏰅􏰄􏰋􏰌􏰒􏰅􏰒􏰆􏰅􏰣􏰙􏰅􏰋􏰴􏰂􏰄􏰆􏰇􏰞􏰌􏰎􏰙􏰃􏰌􏰓􏰏􏰡􏰁􏰁􏰓􏰋􏰌􏰷􏰊􏰅􏰄􏰊􏰌􏰈􏰅􏱄􏰱􏱁􏰙􏰂􏰇􏰁􏰅􏰝􏰌􏰙􏱄􏰽􏱊􏰈􏰌 􏰑􏰅􏰄􏰊􏰅􏰒􏰆􏰌􏰞􏰅􏰋 􏰈􏰂 􏰻􏰅􏰓􏰒􏰂 􏰳􏰒􏰓􏰈􏰂􏰙 􏰈􏰌 􏰸􏰄􏰎􏰌􏰒􏰈􏰌 􏰂􏰇 􏰈􏰌 􏱏􏰇􏰁􏰆􏰄􏰓􏰌􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰖

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174 Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8

está cá “a mais” e a consumir recursos que fazem falta aos mais jovens (não se justifi- 􏰊􏰌􏰒􏰈􏰂􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰔􏰇􏰅 􏰁􏰅 􏰞􏰌􏰁􏰆􏰅 􏰊􏰂􏰋 􏰅􏰎􏰅􏰁 cuidados de saúde, em particular os mais caros, como os oncológicos ou de hemodi- álise) e negando-lhes o direito a, após uma vida inteira de trabalho, usufruírem de uma velhice com dignidade;

- referir os doentes e deficientes como alguém que representa uma despesa sem retorno e, logo, um fardo que seria forço- so, e legítimo, designadamente em nome 􏰈􏰌 􏰹􏰒􏰅􏰊􏰅􏰁􏰁􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅􏰺 􏰬􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂 􏰈􏰅 􏰈􏰅􏰍􏰓􏰒􏰓􏰄 “prioridades”), alijar e deitar fora;

- manter, sob um ideário profundamente machista e (mal) disfarçado por meras de- 􏰊􏰎􏰌􏰄􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰌􏰃􏰁􏰆􏰄􏰌􏰊􏰆􏰌􏰁 􏰁􏰂􏰃􏰄􏰅 􏰌 􏰓􏰞􏰇􏰌􏰎􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰈􏰂􏰁 􏰁􏰅􏰏􏰂􏰁24, um tratamento profundamente dis- criminatório relativamente às mulheres tra- balhadoras, sempre as últimas a serem con- tratadas e as primeiras a serem despedidas, 􏰅 􏰁􏰅􏰋􏰑􏰄􏰅 􏰊􏰂􏰋 􏰄􏰅􏰋􏰇􏰒􏰅􏰄􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰋􏰇􏰓􏰆􏰂 􏰓􏰒􏰍􏰅􏰄􏰓􏰂- res às dos homens25, fazendo delas (como também e nomeadamente de trabalhadores de minorias étnicas e/ou imigrantes, quer le- gais, quer sobretudo ilegais) um forte factor 􏰈􏰅 􏰌􏰞􏰄􏰌􏰠􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰈􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂

􏰅 􏰌􏰃􏰌􏰓􏰏􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 􏰈􏰂􏰁 􏰁􏰌􏰎􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁 􏰅􏰋 􏰞􏰅􏰄􏰌􏰎26.

24 􏰧 􏰓􏰈􏰅􏰂􏰎􏰂􏰞􏰓􏰌 􏰒􏰌􏰤􏰓 􏰄􏰅􏰁􏰅􏰄􏰠􏰌􏰠􏰌 􏰪􏰁 􏰋􏰇􏰎􏰢􏰅􏰄􏰅􏰁 􏰌􏰁 􏰍􏰇􏰒􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰹􏰈􏰂􏰁 􏱈􏱐􏰺 􏰬􏱐􏰓􏰒􏰈􏰅􏰄 􏰷 􏰌 gestação e criação dos filhos; Kirchen – a igreja e Kürchen – a cozinha, como o lugar a elas destinado no lar).

25 25 É verdade que no Portugal do fascismo as mulheres eram gravemente discriminadas (tidas como seres inferiores e submissas aos homens, legalmente impedidas de aceder às magistraturas e à carreira diplomática, só podendo casar com autorização do Ministério da Educação -no caso das professoras primárias -ou do patrão – no caso das enfermeiras, hospedeiras e telefonistas e, sendo já casadas, necessitando de autorização do marido para celebrar um contrato 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰂􏰇 􏰅􏰏􏰅􏰄􏰊􏰅􏰄 􏰇􏰋􏰌 􏰌􏰊􏰆􏰓􏰠􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰅􏰊􏰂􏰒􏰨􏰋􏰓􏰊􏰌􏰩􏰙 􏰋􏰌􏰁 􏰌􏰓􏰒􏰈􏰌 􏰢􏰂􏰝􏰅 􏰌 􏰁􏰓􏰆􏰇􏰌􏰛􏰐􏰂 no mundo do trabalho continua a ser de grave discriminação. De acordo com o chamado “Quadro de Pessoal – Sector Privado”, publicado pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, relativo ao 4o trimestre de 2018, muito em particular nos empregos 􏰈􏰅 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰃􏰌􏰓􏰏􏰌􏰁 􏰔􏰇􏰌􏰎􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰬􏰈􏰅 􏰹􏰅􏰁􏰆􏰌􏰞􏰓􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁􏰙 􏰑􏰄􏰌􏰆􏰓􏰊􏰌􏰒􏰆􏰅􏰁 􏰅 􏰌􏰑􏰄􏰅􏰒􏰈􏰓􏰤􏰅􏰁􏰺􏰙 􏰈􏰅 profissionais “não qualificados” e de “semi-qualificados”), a percentagem de mulheres é de 39,2% do total desses trabalhadores, enquanto a percentagem de homens é de apenas 29,7%. Tudo isto quando a percentagem de mulheres que, 􏰅􏰋􏰑􏰄􏰅􏰞􏰌􏰈􏰌􏰁 􏰅􏰋􏰃􏰂􏰄􏰌 􏰒􏰂􏰁 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂􏰁 􏰋􏰅􏰒􏰂􏰁 􏰔􏰇􏰌􏰎􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰈􏰂􏰁􏰙 􏰆􏰚􏰋 􏰢􏰌􏰃􏰓􏰎􏰓􏰆􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰓􏰞􏰇􏰌􏰓􏰁 à licenciatura ou mesmo superiores (mestrado ou doutoramento) é de 16,7% do total, ou seja, o dobro da percentagem dos trabalhadores homens que é de 􏰌􏰑􏰅􏰒􏰌􏰁 􏱆􏰙􏱆􏱁􏰖 􏰴􏰂􏰄 􏰂􏰇􏰆􏰄􏰂 􏰎􏰌􏰈􏰂􏰙 􏰒􏰌􏰁 􏰑􏰄􏰂􏰍􏰓􏰁􏰁􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰂􏰁 􏱊 􏰒􏰡􏰠􏰅􏰓􏰁 􏰈􏰅 􏰔􏰇􏰌􏰎􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰋􏰌􏰓􏰁 elevadas (quadros superiores, quadros médios, encarregados e chefes de equipe 􏰅 􏰑􏰄􏰂􏰍􏰓􏰁􏰁􏰓􏰂􏰒􏰌􏰓􏰁 􏰌􏰎􏰆􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰔􏰇􏰌􏰎􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌􏰈􏰂􏰁􏰩􏰙 􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰋􏰇􏰒􏰅􏰄􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰬􏰓􏰒􏰊􏰎􏰇􏰓􏰒􏰈􏰂 􏰠􏰅􏰒􏰊􏰓􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 base e subsídios) das mulheres representam apenas, respectivamente, 59,3%, 78,1% e 85% e – pasme-se! – 24,7% daquelas que são pagas aos homens.

26 􏰧􏰁􏰁􏰓􏰁􏰆􏰓􏰋􏰂􏰁 􏰋􏰅􏰁􏰋􏰂 􏰌􏰂 􏰄􏰅􏰒􏰌􏰁􏰊􏰅􏰄 􏰈􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰊􏰅􏰑􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰄􏰅􏰆􏰄􏰨􏰞􏰄􏰌􏰈􏰌􏰁 􏰌􏰊􏰅􏰄􏰊􏰌􏰙 􏰈􏰅􏰁􏰓􏰞􏰒􏰌􏰈􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅􏰙 􏰈􏰌􏰁 􏰋􏰇􏰎􏰢􏰅􏰄􏰅􏰁 􏰅 􏰈􏰂􏰁 􏰢􏰂􏰋􏰂􏰁􏰁􏰅􏰏􏰇􏰌􏰓􏰁􏰙 􏰆􏰌􏰒􏰆􏰂 􏰒􏰂 􏰊􏰌􏰋􏰑􏰂 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰞􏰅􏰄􏰌􏰎

5. Utilização de uma linguagem preten- samente técnica (e até frequentemente em língua inglesa...) para assim procurar ocultar e mistificar a verdadeira natureza das medi- das. Deste modo, o encerramento de esco- las, de centros de saúde e de maternidades é apresentado como mera “reorganização do mapa”; a restrição dos direitos sociais e 􏰂 􏰌􏰃􏰌􏰓􏰏􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰑􏰅􏰒􏰁􏰕􏰅􏰁 􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰹􏰞􏰌􏰄􏰌􏰒- tia de sustentabilidade”; os despedimentos como “eliminação das gorduras supérfluas” ou ainda da implementação da “lean pro- duction” ou de “processos de downsizing”; os cortes nos salários como “reajustes”; o aumento dos poderes patronais quanto à 􏰍􏰓􏰏􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰂􏰁 􏰆􏰅􏰋􏰑􏰂􏰁 􏰅 􏰎􏰂􏰊􏰌􏰓􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰅 􏰈􏰌􏰁 􏰍􏰇􏰒􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰅􏰏􏰓􏰞􏰡􏰠􏰅􏰓􏰁 􏰌􏰂 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰌􏰈􏰂􏰄 􏰊􏰂􏰋􏰂 “mobilidade temporal, geográfica ou fun- cional”, ou “aproveitamento de sinergias”, etc., etc., etc.

E tudo isto a par com verdadeiramente científicos e maquiavélicos mecanismos de manipulação das massas, designadamente com o uso das redes sociais, e com a acrítica e mesmo bestializada mobilização dos “nos- sos” contra “os outros”, com a utilização do ódio e do insulto como instrumentos para 􏰁􏰓􏰋􏰑􏰎􏰅􏰁􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰄􏰅􏰃􏰌􏰓􏰏􏰌􏰄 􏰂􏰁 􏰌􏰈􏰠􏰅􏰄􏰁􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁􏰙 􏰊􏰂􏰋 a completa, intencional e programada falsifi- cação dos factos e a sua substituição pelas verdades “oficiais” e “alternativas”, através da persistente utilização de uma linguagem tão aparentemente simples quanto ficcional, feita essencialmente de meros “slogans” e 􏰹􏰁􏰂􏰇􏰒􏰈 􏰃􏰓􏰆􏰅􏰁􏰺 􏰬􏰈􏰅 􏰔􏰇􏰅􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰂 􏰟􏰌􏰊􏰅- book, mas sobretudo o Twitter, são instru- mentos privilegiados).

􏰈􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰓􏰁 􏰅 􏰑􏰂􏰎􏰡􏰆􏰓􏰊􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰒􏰂 􏰊􏰌􏰋􏰑􏰂 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰅􏰁􏰑􏰅􏰊􏰡􏰍􏰓􏰊􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 trabalho. Não é só a ministra brasileira da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, a proclamar que “a nova era começa agora e menino veste azul e menina veste rosa”, bem como que “a mulher deve ser submissa ao homem no casamento”; são também representantes patronais e professores 􏰇􏰒􏰓􏰠􏰅􏰄􏰁􏰓􏰆􏰗􏰄􏰓􏰂􏰁 􏰌 􏰈􏰅􏰍􏰅􏰒􏰈􏰅􏰄􏰅􏰋 􏰊􏰂􏰒􏰊􏰅􏰑􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰑􏰄􏰨􏰑􏰄􏰓􏰌􏰁 􏰈􏰅 􏰇􏰋 􏰠􏰅􏰄􏰈􏰌􏰈􏰅􏰓􏰄􏰂 “feudalismo industrial”. Sobre isto, sugere-se a leitura de “O regresso dos homens de Neanderthal ao mundo do Trabalho” e “Um Bolsonarus juridicus: 􏰇􏰋 􏰢􏰂􏰋􏰂􏰁􏰁􏰅􏰏􏰇􏰌􏰎 􏰣􏰙 􏰒􏰅􏰊􏰅􏰁􏰁􏰌􏰄􏰓􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅􏰙 􏰇􏰋 􏰑􏰅􏰈􏰨􏰍􏰓􏰎􏰂􏰺􏰙 􏰌􏰋􏰃􏰂􏰁 􏰈􏰌 􏰋􏰓􏰒􏰢􏰌 􏰌􏰇􏰆􏰂􏰄􏰓􏰌 􏰅 publicados em www.noticiasonline.eu.

ANTÓNIO GARCIA PEREIRA

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Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8 175

“A ‘NOVA’ DOGMÁTICA E O ATAQUE AOS DIREITOS TRABALHISTAS”

Do ponto de vista jurídico-formal e da construção do discurso legitimador deste ataque aos direitos não só laborais como também civis e políticos, é muito interes- sante verificar como se assiste a uma in- teressante, retrógrada e até terrorista combinação – designadamente em nome da pretensa necessidade de desmantela- mento do Direito do Trabalho ou então da edificação de um Direito do Trabalho “de emergência”, ou “da”, ou “na”, crise – de 􏰊􏰂􏰒􏰊􏰅􏰑􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰇􏰎􏰆􏰄􏰌􏰥􏰎􏰓􏰃􏰅􏰄􏰌􏰓􏰁 􏰬􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰌􏰁 dos gurus da famigerada Escola de Chica- 􏰞􏰂􏰩 􏰊􏰂􏰋 􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰊􏰅􏰑􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰓􏰒􏰁􏰆􏰓􏰆􏰇􏰊􏰓􏰂􏰒􏰌􏰎􏰓􏰁􏰆􏰌􏰁 e autoritárias do centro da Europa dos anos 30. Deste modo, ao individualismo 􏰅􏰏􏰆􏰄􏰅􏰋􏰂􏰙 􏰊􏰢􏰌􏰋􏰌􏰈􏰂 􏰌 􏰎􏰅􏰞􏰓􏰆􏰓􏰋􏰌􏰄􏰙 􏰅􏰋 􏰒􏰂􏰋􏰅 da “liberdade contratual” e da “autonomia da vontade das partes”, o predomínio do contraente mais forte – o empregador – 􏰅 􏰌 􏰅􏰒􏰍􏰄􏰌􏰔􏰇􏰅􏰊􏰅􏰄 􏰌 􏰈􏰓􏰋􏰅􏰒􏰁􏰐􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 colectivas de trabalho e os sentimentos e laços de solidariedade, juntam-se então as teses institucionalistas e autocráticas. Teses estas que isolam o indivíduo em organiza- 􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰋􏰌􏰁􏰁􏰌 􏰓􏰒􏰈􏰓􏰍􏰅􏰄􏰅􏰒􏰊􏰓􏰌􏰈􏰌􏰁􏰙 􏰆􏰂􏰄􏰒􏰌􏰒􏰈􏰂􏰥􏰂 assim facilmente manipulável e dominável, que apresentam a sociedade como um corpo social constituído por sub-corpos sociais (como a Família, a Escola e a Em- presa) em que, pelo chamado princípio da liderança (“Führerprinzip”), todos eles têm de ter um chefe (ou “duce” ou “führer”) indiscutível e indiscutido, e o qual, ao ní- vel da sociedade em geral, constitui a fonte legitimadora de todas as normas. E, assim, 􏰈􏰅􏰒􏰆􏰄􏰂 􏰈􏰌 􏰎􏰨􏰞􏰓􏰊􏰌 􏰈􏰅􏰁􏰆􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰊􏰅􏰑􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰅 􏰑􏰌􏰄􏰌 􏰇􏰁􏰌􏰄 􏰌 􏰅􏰏􏰑􏰄􏰅􏰁􏰁􏰐􏰂 􏰈􏰅 􏰼􏰌􏰄􏰎 􏱃􏰊􏰢􏰋􏰓􏰆􏰆􏰙 􏰂 􏰞􏰄􏰌􏰒􏰈􏰅construtor da dogmática jurídica nazi, “O Fuhrer é quem protege o Direito”.

Deste modo, de um ultra-positivismo le- galista se passa, então e consoante as con-

veniências do momento, para uma versão modernizada da famigerada e tristemente célebre teoria do “pensamento da ordem concreta”, estruturante do pensamento ju- rídico-político do III Reich. E que foi reedita- da depois, na altura do Presidente dos EUA George W. Bush, pelo jurista Antonin Scalia (que depois chegou a juiz do Supremo Tri- 􏰃􏰇􏰒􏰌􏰎􏰖􏰖􏰖􏰩􏰙 􏰁􏰂􏰃 􏰌 􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌 􏰈􏰌 􏰹􏰆􏰅􏰂􏰄􏰓􏰌 􏰈􏰂 􏰅􏰏􏰅􏰊􏰇􏰆􏰓􏰠􏰂 unitário”, consistente em que se o “Führer” ou o Presidente – enquanto Autoridade 􏰾􏰏􏰅􏰊􏰇􏰆􏰓􏰠􏰌 􏰧􏰃􏰁􏰂􏰎􏰇􏰆􏰌 􏰷 􏰍􏰌􏰤 􏰌􏰎􏰞􏰇􏰋􏰌 􏰊􏰂􏰓􏰁􏰌􏰙 􏰅􏰁􏰆􏰌tem necessariamente de ser legal, simples- mente porque é o “Führer” ou o Presidente a fazê-la). E é fácil de ver onde rapidamente sempre conduziram este tipo de teses – por 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰪 􏰆􏰄􏰓􏰁􏰆􏰅􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰊􏰣􏰎􏰅􏰃􏰄􏰅 􏰆􏰅􏰂􏰄􏰓􏰌 􏰈􏰂 “memorando sobre a tortura” de John Yoo, que significa afinal isto: os EUA não tortu- ram, logo, se empregam violência nos inter- rogatórios, designadamente nos realizados no Iraque, isso não pode ser tortura27.

􏰲􏰌 􏰁􏰅􏰔􏰇􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌 􏰈􏰌􏰔􏰇􏰅􏰎􏰌􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰊􏰅􏰑􏰛􏰕􏰅􏰁􏰙 􏰅 􏰌􏰁-

sente na ideia de que todo o direito é “di-

reito situacional”, Schmitt construiu então

uma teoria legitimadora, de acordo com a

qual o fundamento da validade do Direito

já não está sequer na norma, mas sim no

monopólio decisório de que é titular o so-

􏰃􏰅􏰄􏰌􏰒􏰂 􏰂􏰇 􏰌 􏰌􏰇􏰆􏰂􏰄􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰅􏰏􏰅􏰊􏰇􏰆􏰓􏰠􏰌􏰖 􏰧􏰁􏰁􏰓􏰋􏰙 􏰌

􏰼􏰂􏰒􏰁􏰆􏰓􏰆􏰇􏰓􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰅􏰓􏰏􏰌 􏰈􏰅 􏰁􏰅􏰄 􏰊􏰂􏰒􏰊􏰅􏰃􏰓􏰈􏰌 􏰷 􏰆􏰌􏰎

􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰌􏰓􏰒􏰈􏰌 􏰂 􏰅􏰄􏰌􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏱐􏰅􏰎-

sen – como um instrumento de criação de

􏰎􏰓􏰋􏰓􏰆􏰅􏰁 􏰝􏰇􏰄􏰡􏰈􏰓􏰊􏰂􏰁 􏰌􏰂 􏰅􏰏􏰅􏰄􏰊􏰡􏰊􏰓􏰂 􏰈􏰂 􏰑􏰂􏰈􏰅􏰄 􏰑􏰂-

lítico. E a fonte de legitimação passa a ser

simplesmente a autoridade estatal, a qual

“para criar direito, não precisa de ter razão/

27 􏰳􏰋 􏰈􏰂􏰁 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰁 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰁􏰓􏰒􏰓􏰁􏰆􏰄􏰂􏰁 􏰈􏰅􏰁􏰆􏰌 􏰹􏰆􏰅􏰂􏰄􏰓􏰌 􏰅􏰏􏰅􏰊􏰇􏰆􏰓􏰠􏰌 􏰇􏰒􏰓􏰆􏰗􏰄􏰓􏰌􏰺 􏰍􏰂􏰓 􏰌 construção, sob encomenda, da teoria de que os indivíduos capturados pelos militares ou agentes secretos norte-americanos, nomeadamente sob a invocação da suspeita de serem “terroristas”, não eram cidadãos dos Estados Unidos (logo, as leis destes não se lhe aplicavam), mas também não eram prisioneiros de guerra (pelo que normas como as da Convenção de Genebra não lhes eram igualmente aplicáveis), razão por que nenhuma lei lhes era aplicável e nenhum direito lhes era reconhecido, e toda a sorte de torturas e atrocidades contra eles cometidas estavam “automaticamente” justificadas, também do ponto de vista jurídico.

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direito”, e pode assim, em nome dos “inte- resses superiores” que ela alegadamente personifica e representa, suspender, nos 􏰊􏰢􏰌􏰋􏰌􏰈􏰂􏰁 􏰅􏰁􏰆􏰌􏰈􏰂􏰁 􏰈􏰅 􏰅􏰏􏰊􏰅􏰑􏰛􏰐􏰂􏰙 􏰌 􏰑􏰄􏰨􏰑􏰄􏰓􏰌 Ordem Jurídica. É, em todo o seu “esplen- dor”, a tese do auctoritas facit legem, que foi depois devidamente recauchutada, em ple- na época da crise financeira do século XXI, para a versão do necessitas facit legem, com 􏰂 􏰄􏰅􏰊􏰂􏰒􏰢􏰅􏰊􏰓􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 􏰌􏰂􏰁 􏰾􏰏􏰅􏰊􏰇􏰆􏰓􏰠􏰂􏰁 􏰈􏰓􏰆􏰂􏰁 democráticos quer da qualidade de uma 􏰅􏰁􏰑􏰣􏰊􏰓􏰅 􏰈􏰅 􏰞􏰇􏰌􏰄􏰈􏰓􏰕􏰅􏰁 􏰫􏰒􏰓􏰊􏰂􏰁 􏰈􏰌 􏰼􏰂􏰒􏰁􏰆􏰓􏰆􏰇􏰓- ção, quer dos poderes de, perante as tais 􏰁􏰓􏰆􏰇􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰓􏰆􏰌􏰁 􏰈􏰅 􏰹􏰅􏰏􏰊􏰅􏰑􏰛􏰐􏰂􏰺 􏰬􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰌􏰁 􏰈􏰅 crise política ou financeira), fazerem cessar a aplicação da Lei Fundamental e suspen- der os direitos nela consagrados, operando 􏰌􏰁􏰁􏰓􏰋 􏰠􏰅􏰄􏰈􏰌􏰈􏰅􏰓􏰄􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰠􏰓􏰁􏰕􏰅􏰁 􏰊􏰂􏰒􏰁􏰆􏰓􏰆􏰇􏰊􏰓􏰂􏰒􏰌􏰓􏰁 não declaradas. Em Portugal, nos anos 30 do século 20, isto é, em pleno fascismo, já este tipo de teorias – difundidas, entre ou- tros, por Fezas Vital – significavam que para o jurista “fora das normas queridas e san- cionadas pelos governantes, não há Direito, logo, não há direitos”.

Mas se este tipo de teses legitimou os maiores e mais horrendos crimes contra a Humanidade cometidos pelos regimes nazi e fascistas, é preciso também dizer, e com toda a clareza, que os juristas que as ela- boraram e as desenvolveram têm também as mãos sujas do sangue dessas mesmas atrocidades. Tal como os mais recentes au- tores e cultores das teses da “emergência financeira”, da “legitimidade dos fins” e da aferição da justeza dos meios unicamente em função da sua maior ou menor “eficá- cia” para alcançar tais fins são directamen- te responsáveis, não só pelos desenfreados ataques cometidos por governos ditos de- mocráticos contra os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como também por

todas as respectivas consequências sociais e políticas.

􏰴􏰂􏰄 􏰂􏰇􏰆􏰄􏰂 􏰎􏰌􏰈􏰂􏰙 􏰪􏰁 􏰅􏰏􏰓􏰞􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌􏰁 􏰒􏰅􏰂􏰥􏰎􏰓􏰃􏰅-

􏰄􏰌􏰓􏰁 􏰈􏰌 􏰋􏰗􏰏􏰓􏰋􏰌 􏰌􏰇􏰁􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌 􏰈􏰅 􏰓􏰒􏰆􏰅􏰄􏰠􏰅􏰒􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰂

Estado, designadamente na economia (por

􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰊􏰂􏰋 􏰑􏰄􏰓􏰠􏰌􏰆􏰓􏰤􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰅􏰋 􏰋􏰌􏰁􏰁􏰌 􏰈􏰌􏰁

empresas e sectores mais lucrativos), e da

􏰋􏰗􏰏􏰓􏰋􏰌 􏰈􏰅􏰁􏰄􏰅􏰞􏰇􏰎􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰓􏰁

􏰊􏰂􏰋 􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰎􏰌􏰃􏰂􏰄􏰌􏰓􏰁 􏰪 􏰊􏰌􏰃􏰅􏰛􏰌 􏰬􏰅 􏰊􏰂􏰋

a instituição da lei do mais forte a nível das

􏰊􏰂􏰒􏰆􏰄􏰌􏰆􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰅 􏰂 􏰹􏰈􏰌􏰄􏱑􏰓􏰒􏰓􏰁􏰋􏰂 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰎􏰺􏰙 􏰂􏰇

seja, a “lei da selva” a nível da sociedade),

juntam-se tão curiosa quanto significativa-

􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰌􏰁 􏰅􏰏􏰓􏰞􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌􏰁 􏰈􏰌 􏰋􏰗􏰏􏰓􏰋􏰌 􏰓􏰒􏰆􏰅􏰄􏰠􏰅􏰒-

ção dos poderes do Estado e dos seus ór-

gãos, designadamente dos legisladores, das

polícias e dos tribunais, para perseguirem e

punirem os comportamentos sociais e po-

líticos considerados como susceptíveis de

porem de alguma forma em causa a ordem

política e social vigente. E assim se defende a

hiperregulação e hiper-punição administra-

tiva, disciplinar e até criminal das condutas

􏰈􏰂􏰁 􏰊􏰓􏰈􏰌􏰈􏰐􏰂􏰁 􏰅 􏰈􏰌􏰁 􏰁􏰇􏰌􏰁 􏰂􏰄􏰞􏰌􏰒􏰓􏰤􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁􏰙 􏰊􏰂􏰋

􏰂 􏰈􏰅􏰁􏰋􏰅􏰁􏰇􏰄􏰌􏰈􏰂 􏰌􏰇􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰈􏰌􏰁

􏰒􏰂􏰄􏰋􏰌􏰁 􏰅 􏰁􏰌􏰒􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰑􏰅􏰒􏰌􏰓􏰁􏰖 􏰧 􏰑􏰅􏰄􏰁􏰅􏰞􏰇􏰓􏰛􏰐􏰂 􏰅

criminalização da pobreza, bem como dos

movimentos de resistência, dos activismos

sociais e até dos simplesmente divergentes

(na lógica, já denunciada por Chomski, do

“quem se preocupa e quando se preocupa

é logo acusado de ser político”, subversivo

ou até “vermelho”), é assim a reprodução

sociojurídica da lógica de funcionamento

do capitalismo financeiro global28. E assim

se “legitima” e até “normaliza” a persegui-

􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰓􏰁􏰊􏰓􏰑􏰎􏰓􏰒􏰌􏰄 􏰅 􏰌􏰆􏰣 􏰂 􏰌􏰍􏰌􏰁􏰆􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰂 􏰅 􏰅􏰏􏰑􏰇􏰎-

são dos que pensam e falam diferente, de-

signadamente na Administração Pública, a

começar pelos professores universitários,

28 􏱃􏰂􏰃􏰄􏰅 􏰅􏰁􏰆􏰌 􏰆􏰅􏰋􏰗􏰆􏰓􏰊􏰌􏰙 􏰠􏰅􏰄 􏰂 􏰓􏰋􏰑􏰂􏰄􏰆􏰌􏰒􏰆􏰡􏰁􏰁􏰓􏰋􏰂 􏰆􏰅􏰏􏰆􏰂 􏰈􏰅 􏱍􏰇􏰓􏰎􏰢􏰅􏰄􏰋􏰅 􏰘􏰅􏰓􏰆􏰅 􏱍􏰂􏰒􏰛􏰌􏰎􏰠􏰅􏰁􏰙 􏰹􏱅􏰌􏰎􏰂􏰄􏰙 􏰅􏰏􏰑􏰄􏰂􏰑􏰄􏰓􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰅 􏰈􏰓􏰄􏰅􏰓􏰆􏰂􏱌 􏰁􏰂􏰃􏰄􏰅 􏰌 􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌 􏰅 􏰌 􏰠􏰓􏰂􏰎􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌 􏰝􏰇􏰄􏰡􏰈􏰓􏰊􏰌 􏰒􏰌 􏰌􏰊􏰇􏰋􏰇􏰎􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰂 􏰊􏰌􏰑􏰓􏰆􏰌􏰎􏰺􏰙 􏰸􏰖 􏱒􏰂􏰁􏰢􏰅􏰆􏰆􏰓 􏰬􏰂􏰄􏰞􏰖􏰩􏰙 􏰾􏰏􏰑􏰄􏰂􏰑􏰄􏰓􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰅 􏰦􏰓􏰄􏰅􏰓􏰆􏰂􏰁 􏰒􏰂 Capitalismo, S. Paulo, Cortez, 2018, pp. 101-130.

ANTÓNIO GARCIA PEREIRA

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Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8 177

“A ‘NOVA’ DOGMÁTICA E O ATAQUE AOS DIREITOS TRABALHISTAS”

tal como sucedeu em Portugal, no pós-Se- gunda Guerra Mundial, com 26 dos seus melhores docentes. E se processa agora a perseguição a professores no Brasil sob o lema da “Escola sem Partido”...

De todas estas ideias decorre em linha recta a tese (também ela nazi) de que o direi- to vigente é sempre legítimo simples- mente porque vigora. E vigora (apenas) enquanto as respectivas normas se confor- marem com os objectivos do regime, logo sendo convenientemente esquecidas, rein- terpretadas ou até inutilizadas quando tal não sucede. Que é precisamente aquilo que se verifica quando preceitos da lei, e designada- mente da lei constitucional ainda vigente, são apresentados como “empecilhos” ou mesmo “forças de bloqueio” à acção governamental e aos objectivos por esta prosseguidos.

Assim, e dentro desta lógica, ao mesmo 􏰆􏰅􏰋􏰑􏰂 􏰔􏰇􏰅􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰂 􏰓􏰒􏰈􏰓􏰠􏰡􏰈􏰇􏰂􏰙 􏰅􏰒- quanto tal, é controlado, manipulado e es- magado sob a invocação do “interesse na- cional” e a cultura é desvalorizada e atacada e progressivamente substituída por propa- ganda pura e dura, visando a aculturação e a bestialização das pessoas, o Direito – com a lastimável cumplicidade, activa ou passiva, de uma parte considerável dos juristas – é por completo instrumentalizado relativamente aos objectivos políticos, económicos ou fi- nanceiros visados pelo poder político domi- nante em cada momento, e a aferição da sua legitimidade é restringida ao saber se as suas normas atingiram ou não a finalidade que, por tal poder político, lhes foi apontada29.

29 Em Portugal, mesmo o próprio Tribunal Constitucional enveredou por este 􏰊􏰌􏰋􏰓􏰒􏰢􏰂 􏰬􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰌 􏰑􏰄􏰂􏰑􏰨􏰁􏰓􏰆􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰑􏰄􏰂􏰑􏰂􏰁􏰆􏰌􏰁 􏰈􏰅 􏰎􏰅􏰓 􏰠􏰓􏰁􏰌􏰒􏰈􏰂 􏰌 􏰌􏰎􏰆􏰅􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂 do regime legal dos despedimentos). E chegou ao ponto de, no seu Acórdão no 353/2012, de 5/7, permitir e impor que uma norma que ele acabara de declarar inconstitucional (a que determinou, em nome do combate ao défice e à dívida, o corte do subsídio de Natal aos trabalhadores da Administração Pública em 2012) pudesse afinal ver salvos e salvaguardados não só os efeitos jurídicos já produzidos aquando da declaração de inconstitucionalidade (quanto ao subsídio de férias pago no mês de Junho), mas também os que se viriam a produzir no futuro (ou seja, o subsídio de Natal pago em Novembro)!? E o mesmo se diga do Acórdão no 602/2013, de 20/9, que não declarou a inconstitucionalidade de diversas normas da Lei no 23/2012, de 25/6, que, por

Por fim, outro importante sustentáculo desta “nova” dogmática jurídica consiste, compreensivelmente, aliás, na ostensiva e assumida expulsão do mundo do Di- reito, em nome da pretensa “neutralidade” deste, de todas as concepções e valo- rações da Justiça e da Ética (tidas como espúrias e estranhas à realidade normati- va) e ainda na afirmação crescente de que, como já referido, os fins (designadamente os políticos e financeiros, convenientemen- te travestidos de “grandes desígnios nacio- nais”, assim definidos pelo “grande chefe”) justificam todos os meios, por mais brutais, injustos (e mais ilegais e inconstitucionais) 􏰔􏰇􏰅 􏰅􏰎􏰅􏰁 􏰁􏰅􏰝􏰌􏰋􏰖 􏰧􏰁􏰁􏰓􏰋􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰅􏰋 nome da contenção da despesa pública e do combate ao défice público, se trata de justificar o legal e constitucionalmente in- justificável, como o corte ou a inutilização de direitos (tais como o direito a comple- mentos de reforma estabelecidos há várias décadas na contratação colectiva30, ou o di- reito à pensão por trabalhador da Adminis- tração Pública que sofreu um acidente ou contraiu uma doença em serviço, de que resultou uma incapacidade parcial perma- nente)31. E logo toda esta tese surge conve- nientemente embalada com teorias como a do “estado de necessidade financeira” para assim justificar um verdadeiro “estado de sítio não declarado”, com a consequente

􏰁􏰅􏰇 􏰆􏰇􏰄􏰒􏰂􏰙 􏰓􏰒􏰆􏰄􏰂􏰈􏰇􏰤􏰓􏰇 􏰈􏰓􏰠􏰅􏰄􏰁􏰌􏰁 􏰌􏰎􏰆􏰅􏰄􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰌􏰂 􏰼􏰨􏰈􏰓􏰞􏰂 􏰈􏰂 􏱀􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂􏰙 􏰅 􏰌􏰊􏰨􏰄􏰈􏰐􏰂 􏰅􏰁􏰁􏰅 􏰔􏰇􏰅 􏰝􏰇􏰁􏰆􏰓􏰍􏰓􏰊􏰌 􏰌􏰁 􏰂􏰑􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰒􏰂􏰄􏰋􏰌􏰆􏰓􏰠􏰌􏰁 􏰅􏰋 􏰊􏰌􏰇􏰁􏰌 􏰑􏰂􏰄 􏰌􏰁􏰁􏰅􏰒􏰆􏰌􏰄􏰅􏰋 􏰹􏰅􏰋 􏰄􏰌􏰤􏰕􏰅􏰁 conjunturais plenamente válidas, dada a conjuntura particularmente difícil que a economia nacional no seu conjunto atravessa e que está na base dos compromissos assumidos no quadro do Memorando de Entendimento de 2011” (sic!).

30 É o caso do Acórdão do Tribunal Constitucional no 413/2014, de 30/5, que não declarou a inconstitucionalidade da norma do arto 75o da Lei do orçamento de Estado para 2014 (Lei no 83C/2013, de 31/12) que precisamente possibilitou a cessação, pela empresa do Metro de Lisboa, do pagamento de uns complementos de reforma há muito consagrados no Acordo de Empresa.

31 Assim decidiu o Tribunal Constitucional no seu Acórdão no 786/2017, de 21/11, consagrando o entendimento de que não seria inconstitucional a norma da Lei no 11/2014, de 6/3, que, uma vez mais em nome da diminuição da despesa pública, passou a determinar que um trabalhador da Administração Pública que sofra um acidente em serviço ou contraia uma doença profissional e fique a padecer de uma incapacidade permanente não poderá, porém, acumular a respectiva pensão com o vencimento ou, após a aposentação, com a sua pensão de aposentado.

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compressão ou até a supressão de direi- tos, liberdades e garantias fundamentais. E não apenas no campo dos direitos laborais, mas também no campo mais amplo dos 􏰈􏰓􏰄􏰅􏰓􏰆􏰂􏰁 􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰓􏰁 􏰅 􏰑􏰂􏰎􏰡􏰆􏰓􏰊􏰂􏰁 􏰬􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 com a revisão das leis penais e processu- ais penais e o aniquilamento de princípios constitucionais essenciais como o da pre- 􏰁􏰇􏰒􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰅 􏰓􏰒􏰂􏰊􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌􏰙 􏰅 􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰁􏰆􏰄􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰎􏰅􏰞􏰓􏰁- lativas às liberdades de manifestação e de organização, designadamente com a defesa 􏰊􏰌􏰈􏰌 􏰠􏰅􏰤 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰌􏰃􏰅􏰄􏰆􏰌 􏰈􏰌 􏰅􏰏􏰆􏰓􏰒􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰌􏰁􏰁􏰂􏰊􏰓􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰁􏰓􏰒􏰈􏰓􏰊􏰌􏰓􏰁 􏰅 􏰈􏰂􏰁 􏰑􏰌􏰄􏰆􏰓􏰈􏰂􏰁 􏰑􏰂􏰎􏰡􏰆􏰓􏰊􏰂􏰁􏰩􏰙 num processo grave e preocupantemente similar ao que se verificou com a Consti- tuição de Weimar no início da ascensão do nazismo ao Poder32.

Traço típico da nova versão deste tipo de teorias é, também, o aparecimento, a par dos mais ou menos inflamados discur- sos moralizadores (arrancando de reais e graves problemas como o da corrupção), de um “activismo judiciário”, com “super juízes” e “super procuradores” mediatica- mente promovidos a uma espécie de “sal- vadores da Pátria”. Os quais, também eles “justificados” pela pretensa legitimidade dos fins que proclamam, actuam e se com- portam acima da própria lei33.

No que toca mais especificamente ao

Direito do Trabalho e aos direitos laborais,

32 􏱃􏰇􏰞􏰅􏰄􏰅􏰥􏰁􏰅 􏰌 􏰎􏰅􏰓􏰆􏰇􏰄􏰌 􏰈􏰂􏰁 􏰆􏰅􏰏􏰆􏰂􏰁 􏰹􏰧 􏰠􏰡􏰃􏰂􏰄􏰌 􏰊􏰂􏰒􏰞􏰅􏰎􏰌􏰈􏰌􏰺􏰙 􏰹􏰧􏰒􏰌􏰆􏰂􏰋􏰓􏰌 􏰈􏰅 􏰇􏰋 ditador, “O ovo da serpente” e “Que esquerda é esta?”, da minha autoria e publicados em www.noticiasonline.eu.

33 􏰼􏰂􏰋 􏰂 􏰑􏰄􏰅􏰊􏰓􏰂􏰁􏰂 􏰌􏰇􏰏􏰡􏰎􏰓􏰂 􏰈􏰅 􏰁􏰅􏰋􏰑􏰄􏰅 􏰊􏰓􏰄􏰫􏰄􏰞􏰓􏰊􏰌􏰁 􏰅 􏰓􏰋􏰑􏰇􏰒􏰅􏰁 􏰠􏰓􏰂􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰂 segredo de Justiça (que fazem passar para a opinião pública apenas os elementos que interessam às autoridades judiciárias e às suas teses), assiste- se, de forma crescente, ao jogo perverso de cidadãos serem denunciados, acusados, julgados e sentenciados sumariamente na praça pública, com os respectivos direitos, e desde logo o da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, totalmente aniquilados. E o processo penal transformado – pelas mãos daqueles que, sendo supostamente os defensores da Lei, se comportam, todavia, como se estivessem acima dela – num processo de abate de adversários políticos e de cidadãos incómodos. 􏰼􏰂􏰋 􏰌􏰔􏰇􏰅􏰎􏰅􏰁 􏰔􏰇􏰅 􏰈􏰓􏰤􏰅􏰋 􏰊􏰂􏰋􏰃􏰌􏰆􏰅􏰄 􏰌 􏰌􏰎􏰆􏰌 􏰊􏰄􏰓􏰋􏰓􏰒􏰌􏰎􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅􏰙 􏰋􏰌􏰏􏰓􏰋􏰅 􏰌 􏰊􏰂􏰄􏰄􏰇􏰑􏰛􏰐􏰂 e os altos delinquentes, a mostrar-se iguais ou piores do que aqueles que eles dizem combater. E com todos os que se erguem contra este estado de coisas a serem logo apodados de estarem do lado dos corruptos e demais 􏰊􏰄􏰓􏰋􏰓􏰒􏰂􏰁􏰂􏰁􏰖􏰖􏰖 􏱃􏰂􏰃􏰄􏰅 􏰅􏰁􏰆􏰌 􏰋􏰌􏰆􏰣􏰄􏰓􏰌 􏰠􏰁􏰇􏰞􏰅􏰄􏰅􏰥􏰁􏰅 􏰌 􏰎􏰅􏰓􏰆􏰇􏰄􏰌 􏰈􏰂􏰁 􏰆􏰅􏰏􏰆􏰂􏰁 􏰹􏱃􏰓􏰎􏰚􏰒􏰊􏰓􏰂􏰁 􏰈􏰅 chumbo”, “A Justiça acima de tudo e o Ministério Público acima de todos?”, 􏰹􏰵􏰓􏰒􏰓􏰁􏰆􏰣􏰄􏰓􏰂 􏰴􏰫􏰃􏰎􏰓􏰊􏰂 􏰂􏰇 􏰈􏰅􏰁􏰠􏰌􏰄􏰓􏰂 􏰑􏰫􏰃􏰎􏰓􏰊􏰂􏱓􏰺􏰙 􏰹􏰼􏰌􏰄􏰎􏰂􏰁 􏰧􏰎􏰅􏰏􏰌􏰒􏰈􏰄􏰅 􏰷 􏰅􏰋 􏰒􏰂􏰋􏰅 􏰈􏰌 justiça ou em nome dele próprio?” e “Em nome da Justiça, em nome de todos nós”, de minha autoria e publicados em www.noticiasonline.eu.

a concretização desta pretensamente nova dogmática laboral passa por pontos já bem conhecidos, tais como:

1. Negação, ou pelo menos progressiva erosão, da autonomia dogmática e científi- ca do Direito do Trabalho como Ramo do Direito, com a pregação da necessidade ou da “utilidade” da sua substituição pelo Di- reito Civil ou, pelo menos, da sua profunda adaptação aos princípios e regras próprios deste. Idêntica involução se verifica quanto ao Direito Processual do Trabalho (com a desvalorização do apuramento da verdade material dos factos, a admissão crescente do predomínio da forma sobre a substância, a 􏰋􏰇􏰎􏰆􏰓􏰑􏰎􏰓􏰊􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰅 􏰈􏰅􏰊􏰓􏰁􏰕􏰅􏰁 􏰔􏰇􏰅􏰙 􏰁􏰂􏰃 􏰑􏰄􏰅􏰆􏰅􏰏- tos meramente adjectivos ou formais, não chegam a apreciar o mérito das causas, etc.).

2. Negação do valor normativo e da efi- cácia vinculativa – bem sustentada e afir- 􏰋􏰌􏰈􏰌 􏰑􏰂􏰄 􏰻􏰂􏰃􏰅􏰄􏰆 􏰧􏰎􏰅􏰏􏰓􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂 􏰷 􏰈􏰂􏰁 princípios, e em particular dos princípios próprios do Direito do Trabalho (designa- damente os princípios que Hector-Hugo Barbagelata justamente designou de segun- da geração34, como os da tutela jurisdicio- nal efectiva, da busca da verdade material, do predomínio do real sobre o formal, do favor laboratoris quanto à articulação das Fontes de Direito do Trabalho entre si, e bem assim dos da interdependência e com- plementaridade de todas as normas sobre direitos humanos, e da progressividade e irreversibilidade de tais normas).

3. Defesa de um legalismo ultra-positivis-

􏰆􏰌􏰙 􏰊􏰂􏰋 􏰈􏰅􏰁􏰠􏰌􏰎􏰂􏰄􏰓􏰤􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰔􏰇􏰅􏰁􏰆􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰌 􏰍􏰓􏰁-

calização da constitucionalidade das normas

e em particular das normas laborais (che-

gando-se ao ponto, em Portugal, de se ter

pretendido sustentar que o Memorando de

Entendimento com a Tróica e as leis aprova-

34 Cf. “Los princípios de Derecho del Trabajo de segunda generacion”, JusLabor 1/2008, p. 17. PP?

ANTÓNIO GARCIA PEREIRA

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Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8 179

“A ‘NOVA’ DOGMÁTICA E O ATAQUE AOS DIREITOS TRABALHISTAS”

􏰈􏰌􏰁 􏰑􏰅􏰎􏰂 􏱍􏰂􏰠􏰅􏰄􏰒􏰂 􏰅􏰋 􏰁􏰇􏰌 􏰅􏰏􏰅􏰊􏰇􏰛􏰐􏰂 􏰑􏰄􏰅􏰠􏰌􏰎􏰅- ceriam sobre a própria Constituição).

4. Afirmação acintosa e afrontosa do maior desprezo pelos princípios constitu- cionais mais básicos (como o da certeza e segurança jurídicas dos cidadãos, por um lado, e os da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência, por outro).

5. Esvaziamento e inutilização prática dos sistemas de fiscalização da

constitucionalidade das leis e de defesa dos direitos fundamentais (nomeadamen- te, e tal como tem sucedido em Portugal, 􏰓􏰒􏰅􏰏􏰓􏰁􏰆􏰚􏰒􏰊􏰓􏰌 􏰈􏰅 􏰈􏰅􏰊􏰎􏰌􏰄􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰓􏰒􏰊􏰂􏰒􏰁􏰆􏰓􏰆􏰇- cionalidade por omissão, salvaguarda dos efeitos entretanto produzidos (ao estilo do “facto consumado”) por leis declara- das inconstitucionais35, custas judicias ele- vadíssimas para quem recorre ao Tribunal Constitucional, imposição da lógica de 􏰔􏰇􏰅 􏰌 􏰔􏰇􏰌􏰎􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰈􏰌 􏰜􏰇􏰁􏰆􏰓􏰛􏰌 􏰁􏰅 􏰌􏰍􏰅􏰄􏰅 􏰅􏰏􏰊􏰎􏰇- sivamente (ou quase) pelo número de de- 􏰊􏰓􏰁􏰕􏰅􏰁 􏰑􏰄􏰂􏰈􏰇􏰤􏰓􏰈􏰌􏰁􏰙 􏰂 􏰝􏰗 􏰄􏰅􏰍􏰅􏰄􏰅􏰒􏰊􏰓􏰌􏰈􏰂 􏰎􏰌􏰄􏰞􏰂 􏰑􏰄􏰅􏰈􏰂􏰋􏰡􏰒􏰓􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰔􏰇􏰅􏰁􏰆􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌 􏰁􏰂􏰃􏰄􏰅 as de substância, etc., etc., etc.).

6. Degradação e até inutilização – seja

􏰑􏰅􏰎􏰌 􏰁􏰇􏰌 􏰅􏰏􏰆􏰓􏰒􏰛􏰐􏰂 􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌􏰎􏰙 􏰁􏰅􏰝􏰌 􏰑􏰅􏰎􏰂 􏰅􏰁􏰠􏰌􏰤􏰓􏰌-

mento dos meios, materiais e humanos, que

lhe estão afectos – dos organismos estatais

􏰅􏰒􏰊􏰌􏰄􏰄􏰅􏰞􏰇􏰅􏰁􏰙 􏰔􏰇􏰅􏰄 􏰈􏰌 􏰆􏰇􏰆􏰅􏰎􏰌 􏰈􏰌􏰁 􏰔􏰇􏰅􏰁􏰆􏰕􏰅􏰁 􏰅

􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂 􏰬􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰂 􏰵􏰓􏰒􏰓􏰁􏰆􏰣􏰄􏰓􏰂 􏰈􏰂

􏱀􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂􏰙 􏰅􏰏􏰆􏰓􏰒􏰞􏰇􏰓􏰒􏰈􏰂􏰥􏰂 􏰂􏰇􏰙 􏰑􏰅􏰎􏰂 􏰋􏰅􏰒􏰂􏰁􏰙 􏰓􏰒-

tegrando os seus serviços noutros ministé-

rios, como o da Economia)36, quer da fiscali-

zação de aplicação das leis, designadamente

os da Administração Estadual do Trabalho

(como a Inspecção-Geral do Trabalho).

35 Como sucedeu com o já citado Acórdão do Tribunal Constitucional no 353/2012, de 5/7, que permitiu o não pagamento dos subsídios quer de férias (em Junho), quer de Natal (em Novembro) de 2012, não obstante ter declarado a inconstitucionalidade das normas da Lei do Orçamento de Estado para 2012 (artos 21 e 25o da Lei no 64-B/2011, de 30/12) que estabeleciam esse não pagamento.

36 Como aconteceu em Portugal com o XIX Governo Constitucional (o governo de Passos Coelho/Paulo Portas) em cuja orgânica (ver arto 2o do Dec. Lei no 86-A/2011, de 12/7) desapareceu o Ministério do Trabalho, cujas competências na área do Emprego foram integradas nas do Ministério da Economia.

7. Pregação de um autêntico “ódio à ju- risdição laboral”, negação da sua especifi- cidade a todos os níveis, e mesmo defesa 􏰍􏰂􏰄􏰋􏰌􏰎 􏰈􏰌 􏰅􏰏􏰆􏰓􏰒􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰂􏰁 􏱀􏰄􏰓􏰃􏰇􏰒􏰌􏰓􏰁 􏰅 􏰈􏰌􏰁 􏰋􏰌- gistraturas do Trabalho.

Ora, perante tudo quanto antecede, im- 􏰑􏰕􏰅􏰥􏰁􏰅 􏰌􏰞􏰂􏰄􏰌 􏰁􏰇􏰃􏰎􏰓􏰒􏰢􏰌􏰄 􏰔􏰇􏰅􏰙 􏰊􏰂􏰋􏰂 􏰌􏰎􏰓􏰗􏰁 􏰁􏰅 verificou por toda a Europa, mas muito em especial em Portugal, o resultado essencial da adopção desta “nova” dogmática laboral e das medidas que ela precisamente visa justificar é o empobrecimento drástico e generalizado de quem trabalha ou já trabalhou a vida inteira37 e o aumen- 􏰆􏰂 􏰈􏰌􏰁 􏰁􏰓􏰆􏰇􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰅 􏰗􏰄􏰅􏰌􏰁 􏰈􏰅 􏰋􏰓􏰁􏰣􏰄􏰓􏰌􏰙 􏰌 􏰑􏰌􏰄 com uma cada vez maior concentração de riqueza nas mãos de uma minoria cada vez mais ínfima. Vale a pena recordar que, se- gundo as estatísticas da própria ONU, no ano de 2017, cerca de 1% de toda a popu- lação do Mundo se apropriou de 80% de toda a riqueza criada no planeta e 50% da mesma população recebeu... 0% dessa mes- ma riqueza. Em contrapartida, entre 2010 e 2017, o crescimento da riqueza das mul- tinacionais foi de 13% e só no último ano 􏰌􏰁􏰊􏰅􏰒􏰈􏰅􏰇 􏰌 􏱉􏰰􏰱 􏰋􏰓􏰎 􏰋􏰓􏰎􏰢􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰈􏰨􏰎􏰌􏰄􏰅􏰁􏰙 􏰂􏰇 seja, sete vezes mais que o suficiente para 􏰌􏰊􏰌􏰃􏰌􏰄 􏰊􏰂􏰋 􏰌􏰁 􏰁􏰓􏰆􏰇􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰑􏰂􏰃􏰄􏰅􏰤􏰌 􏰅􏰏􏰆􏰄􏰅- ma no Mundo!

Mas importa sublinhar também que,

como o demonstram claramente dois es-

tudos recentes – um, da OIT, intitulado

“Trabalho digno em Portugal 2008-2018”

e outro de um investigador universitário,

Frederico Cantante, intitulado “O merca-

do de trabalho em Portugal e nos Países

Europeus – Estatísticas 2018”, as medi-

das preconizadas e impostas pelos

grandes interesses que essa mesma

37 Calcula-se que mais de 80% do peso das chamadas “medidas de austeridade”, em particular a diminuição de rendimentos e o aumento de impostos, foi suportado pelos trabalhadores por conta de outrem, muito em particular pelos funcionários públicos, pelos reformados e pensionistas.

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dogmática sustenta e legitima afinal também não atingiram nenhum dos objectivos com que se apresentaram e se procuraram justificar.

􏰾􏰙 􏰌􏰁􏰁􏰓􏰋􏰙 􏰆􏰅􏰒􏰈􏰂􏰙 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰏􏰅􏰋􏰑􏰎􏰂􏰙 􏰊􏰂􏰎􏰂􏰊􏰌􏰈􏰂 mais de 1/5 de toda a população portu- 􏰞􏰇􏰅􏰁􏰌 􏰌􏰃􏰌􏰓􏰏􏰂 􏰈􏰂 􏰎􏰓􏰋􏰓􏰌􏰄 􏰈􏰌 􏰑􏰂􏰃􏰄􏰅􏰤􏰌 􏰅 􏰅􏰏􏰑􏰇􏰎- sado do acesso aos direitos sociais cerca de meio milhão de cidadãos carenciados, tais medidas não determinaram nem ne- nhum aumento, muito menos significativo, de produtividade da economia portuguesa, nem nenhum acréscimo do emprego, nem diminuíram a chamada “segmentação” (ou 􏰈􏰓􏰍􏰅􏰄􏰅􏰒􏰊􏰓􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰅 􏰊􏰂􏰒􏰈􏰓􏰛􏰕􏰅􏰁􏰙 􏰄􏰅􏰋􏰇􏰒􏰅􏰄􏰌􏰆􏰨- rias ou outras) entre os vários sectores do denominado mercado de trabalho38. Mas, em contrapartida, possibilitaram uma marcada transferência de rendimentos do Trabalho para o Capital e o aumento e concentração da riqueza nas mãos daque- les que já a detinham39. Ao ponto de, em 2018, os administradores das 20 maiores empresas cotadas na Bolsa de Lisboa ga- nharem, em média, vencimentos e prémios 52 vezes superiores aos dos trabalhadores, chegando nalguns casos a 140 vezes mais. Mais! Segundo o estudo da OIT, “Global Wage Report 2016/2017: wage inequality in workplace”, Portugal é mesmo o país da União Europeia onde as desigualdades de vencimento são mais elevadas...

Em suma, aquilo que a referida “nova” dogmática jus-laboral justificou e le- gitimou foi, por um lado, a fome, a

38 Do já citado relatório da OIT, “Trabalho digno em Portugal 2008-2018”, resulta claro que as medidas das reformas laborais da austeridade não se traduziram em aumento de produtividade (p. 41), “não alcançaram o seu 􏰂􏰃􏰝􏰅􏰊􏰆􏰓􏰠􏰂 􏰅􏰏􏰑􏰎􏰡􏰊􏰓􏰆􏰂 􏰈􏰅 􏰄􏰅􏰈􏰇􏰤􏰓􏰄 􏰌 􏰁􏰅􏰞􏰋􏰅􏰒􏰆􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰈􏰂 􏰋􏰅􏰄􏰊􏰌􏰈􏰂 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌􏰎􏰢􏰂􏰺 􏰬􏰑􏰖 􏰰􏰱􏰩􏰖 E no estudo de 17/9/18 do economista Eugénio Rosa, intitulado “O caminho para a estagnação em Portugal” e publicado em www.eugeniorosa.com, é 􏰌􏰁􏰁􏰓􏰒􏰌􏰎􏰌􏰈􏰂 􏰅􏰏􏰑􏰄􏰅􏰁􏰁􏰌􏰋􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰔􏰇􏰅 􏰹􏰌 􏰑􏰄􏰂􏰈􏰇􏰆􏰓􏰠􏰓􏰈􏰌􏰈􏰅 􏰑􏰂􏰄 􏰅􏰋􏰑􏰄􏰅􏰞􏰌􏰈􏰂􏰙 􏰊􏰌􏰎􏰊􏰇􏰎􏰌􏰈􏰌 􏰊􏰂􏰋 base no VAB – Valor Acrescentado Bruto (para não ser influenciado nem por impostos nem por subsídios) tem diminuído desde 2013 para cá.

39 Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística -INE, entre 2010 e 2015, a Parte dos Salários e Ordenados do PIB diminuiu de 36,8% para 􏱈􏱊􏰙􏱄􏱁􏰙 􏰅􏰒􏰔􏰇􏰌􏰒􏰆􏰂 􏰌 􏰴􏰌􏰄􏰆􏰅 􏰈􏰂 􏰾􏰏􏰊􏰅􏰈􏰅􏰒􏰆􏰅 􏰈􏰅 􏰾􏰏􏰑􏰎􏰂􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂 􏰬􏰈􏰅 􏰔􏰇􏰅 􏰁􏰅 􏰌􏰑􏰄􏰂􏰑􏰄􏰓􏰌􏰋 􏰂􏰁 􏰑􏰌􏰆􏰄􏰕􏰅􏰁􏰩 􏰊􏰄􏰅􏰁􏰊􏰅􏰇 􏰈􏰅 􏱊􏱄􏰙􏱈􏱁 􏰑􏰌􏰄􏰌 􏱊􏱈􏱁􏰖

miséria e o desemprego para quem nada tem e tudo produz e, por outro, o acentuado aumento da riqueza da pequena minoria que nada faz e se apropria do que os outros produzem.

Ora, perante tudo isto, os juristas, e muito em particular os juslaboralistas, não podem nem ser uma espécie de ignaros e obedientes “guardas de Auschwitz”, nem aceitar o papel de meros instrumentos, dó- ceis e pretensamente neutrais, deste pro- cesso de profundo retrocesso social, políti- co e civilizacional.

Não esqueçamos, por isso, que, como bem assinalou Alain Supiot40, o trabalho é parte da identidade humana e “o elemento primeiro do Direito não é o Número, mas o Sujeito”, e este não pode ser reduzido a um mero objecto ou a uma unidade de conta.

E como o mesmo Alain Supiot magistral- mente afirmou numa célebre conferência proferida na Escola nacional dos Magis- trados franceses, o papel do próprio juiz não é aplicar as leis reais ou supostas da economia, mas aplicar as leis, ponto final. E se é preciso que acompanhe e apoie a mudança na sociedade em que vive, deve 􏰍􏰌􏰤􏰚􏰥􏰎􏰂 􏰊􏰇􏰓􏰈􏰌􏰒􏰈􏰂 􏰔􏰇􏰅 􏰌􏰁 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰈􏰅 􏰆􏰄􏰌􏰃􏰌- lho continuem sob a alçada do Direito, que 􏰊􏰂􏰒􏰆􏰓􏰒􏰇􏰅􏰋 􏰄􏰅􏰎􏰌􏰛􏰕􏰅􏰁 􏰊􏰓􏰠􏰓􏰎􏰓􏰤􏰌􏰈􏰌􏰁􏰖

Essa postura passa pela luta, firme e

persistente, contra a autêntica “Gleichs-

chaltung” (uniformização e controle abso-

luto proveniente do topo, na terminologia

da teoria jurídica nazi) do pensamento

dominante e, desde logo, da denominada

“nova” dogmática laboral. Imposta sob os

já referidos “postulados” que, de apresen-

tados como indiscutíveis e indiscutidos ao

abrigo daquilo que Noan Chomsky apeli-

da certeiramente de “teorias da fabricação

40 Cf. A. Supiot, Crítica do Direito do Trabalho, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 352.

ANTÓNIO GARCIA PEREIRA

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Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8 181

“A ‘NOVA’ DOGMÁTICA E O ATAQUE AOS DIREITOS TRABALHISTAS”

do conhecimento”, devem antes passar a ser completamente discutidos e, mais do que isso, cientificamente demolidos. Como passa também pelo combate ao confor- mismo do chamado “argumento de Vichy”, ou seja, do argumento colaboracionista de que, como os nazis ocuparam brutalmente a França e arrogantemente marcharam sob o Arco do Triunfo, em Paris, seria “correc- to” e até “patriótico” aceitar tal ocupação porque supostamente “não há alternativa”.

Contra o discurso mistificatório da pre- tensa neutralidade, não nos calemos, pois, juslaboralistas brasileiros e portugueses, pois que, se nada dissermos nem fizermos, aceitaremos afinal a “banalização do mal” e enfrentaremos decerto aquilo para que o

poeta brasileiro, e resistente contra a di- tadura militar, Eduardo Alves da Costa aler- ta no seu belo poema “No caminho com Maiakóvski”:

􏰹􏰲􏰌 􏰑􏰄􏰓􏰋􏰅􏰓􏰄􏰌 􏰒􏰂􏰓􏰆􏰅 􏰅􏰎􏰅􏰁 􏰁􏰅 􏰌􏰑􏰄􏰂􏰏􏰓􏰋􏰌􏰋 e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão. E não di- zemos nada.

Até que um dia, o mais frágil deles en-

tra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada!”

Nós podemos e queremos dizer e fazer tudo! Tudo o que for preciso fa- zer contra a opressão, contra a explo- ração desenfreada, contra a injustiça!

Não nos esqueçamos de que, ao longo da História, a Humanidade nunca colocou nenhum problema para o qual não se en- contrasse concomitantemente a solução.

Há, pois, alternativa, como a Resistência se encarregou de demonstrar e a Histó- ria de confirmar. E hoje, neste campo da chamada “nova” dogmática laboral, nós, juslaboralistas empenhados na construção 􏰈􏰅 􏰇􏰋 􏰋􏰇􏰒􏰈􏰂 􏰋􏰌􏰓􏰁 􏰝􏰇􏰁􏰆􏰂􏰙 􏰁􏰅􏰋 􏰅􏰏􏰑􏰎􏰂􏰄􏰌􏰛􏰐􏰂 nem opressão, é que somos, é que temos de ser, a Resistência!

Vamos, pois, a essa luta, desmascarando a dogmática laboral dos grandes interesses do capital financeiro e defendendo os direitos, a Justiça e a dignidade de quem trabalha!

E por isso, deste XV Encontro Jutra, no Pará, daqui erguemos a voz e gritamos a todos os opressores e seus colaboradores: Não passarão! Viva a Resistência!

182 Juslaboralistas - Revista da ESAT - Natal - RN v. 1 n. 1 p. 01-182 jan. 2022. ISBN: 978-65-997103-0-8